quinta-feira, julho 04, 2013

O Cinema dos Anos 2000: Colateral, de Michael Mann




Entre o ritmo pulsante e a acção contida, mas vibrante, está o grande trunfo deste filme. Obra que, a bem dizer, é coerente e identificativa dos traços de Michael Mann, o artífice por detrás das câmeras e o homem que é capaz de filmar a cidade e a sua noite com uma personalidade invejáveis. A reboque das personagens e das suas convicções, somos conduzidos para uma trama misteriosamente camuflada e à mercê de inúmeras metáforas, sempre envolta num clima de ansiedade e suspense, e segundo uma atmosfera irrequieta, vadia, que nunca dorme.

Num táxi entra um cliente, e na cidade entram dois destinos, dois flancos do mesmo campo mental, tal como na noite entramos nós, espectadores, à boleia com Mann e os seus permeáveis planos aéreos. De um lado, o taxista que planeia a vida, os seus sonhos, a sua família, o seu trabalho e as conquistas para o sucesso, do outro, o cliente, o vilão e o assassino que não cobiça qualquer futuro ou esforço algum em busca de um ideal caracterizado por signos e valores moralmente (e previamente) aceites. No seguimento, os (aparentes) opostos atraem-se e na necessária e inevitável confrontação os efeitos colaterais sobressaem-se e sobem à tona em electrizantes debates e em angustiantes combates (à boa maneira dos gangsters).

Temos, portanto, dois eixos numa mesma história, diametralmente distinguíveis, mas humanamente confusos e questionáveis, quase como se pudéssemos e tivéssemos a capacidade de enveredar por um ou por outro se tal fosse a nossa intenção, isto sem descrédito nenhum para o desenrolar dos acontecimentos, porque na verdade ambos os protagonistas têm algo de aliciante, de cativante, algo que nos diz respeito e com que nos identificamos. A competência do argumento neste aspecto é impecável, diga-se de passagem, embora a concretização ou as interpretações pudessem estar mais intensas (os actores apesar de tudo estão bem). A narrativa, essa, avança assim, desde a contenção à acção frenética e entusiasmante, sempre na cadência e tensão certas e sem grandes exageros ou montagens alucinantes (o que é de salutar).

A realização, por seu lado, está noutro patamar, tanto na vivacidade da pequena escala (ou do enredo propriamente dito), no carro — espaço confinado e expressivamente amplificado — ou até no metro, como na luminosidade e transparência da grande escala — Los Angeles — fabulosamente descrita e interpretada. Michael Mann é exímio neste retrato a três dimensões e em alta definição (dois intérpretes e uma cidade), ao arquitectar um gradual jogo de poder e de suspeita, incutindo simultaneamente a audiência a questionar, a duvidar e a reflectir sobre o que vê e o que não vê.

COLATERAL pode-se definir como um cruzamento de duas vidas, de duas jornadas, que na colisão dissipam belas sequências de diálogo e de acção exemplar e lateralmente filmadas na vivência urbana e nocturna de L.A., mas, sobretudo, conservam um rol de dúvidas e receios pessoais que, no fundo, dizem respeito a todos nós como indivíduos e como sociedade. Cada consciência fará por si e para si tudo o que a motivará, tudo o que acreditará e necessitará e, aí, os dois protagonistas aqui em foco são uma mera amostra, são duas faces da mesma moeda, adequadamente encaixada num nível entre tantos outros e onde a realidade é bem mais estratificada e abrangente. Alicerçado então por diversas camadas de entendimento e envolvimento, o filme acaba por impressionar na medida em que converte um argumento interessante numa experiência admirável.

por Jorge Teixeira (Caminho Largo).

Elenco
. Tom Cruise (Vincent), Jamie Foxx (Max Durocher), Jada Pinkett Smith (Annie Farrell), Mark Ruffalo (Ray Fanning), Peter Berg (Richard Weidner), Bruce McGill (Frank Pedrosa), Irma P. Hall (Ida Durocher), Javier Bardem (Felix Reyes-Torrena)


Palmarés
. BAFTA: Melhor Fotografia (Dion Beebe, Paul Cameron)
. Festival de Veneza: Prémio Future Film (Michael Mann)
. Satellite Awards: Melhor Montagem (Jim Miller, Paul Rubell), Melhor Som (Lee Orloff, Elliott Koretz, Michael Minkler, Myron Nettinga)
. National Board of Review: Melhor Realizador (Michael Mann)
. Associação de Críticos de Los Angeles: Melhor Fotografia (Dion Beebe, Paul Cameron)


Sobre Tom Cruise

Representação máxima da definição contemporânea de star-system em Hollywood, a sua carreira tem conhecido a união entre o cinema comercial — sobretudo de acção, com ASES INDOMÁVEIS (1986, Tony Scott) e MISSÃO IMPOSSÍVEL (1996, Brian De Palma) em destaque — e desempenhos de profundo desenvolvimento psicológico — NASCIDO A 4 DE JULHO (1989, Oliver Stone) e MAGNOLIA (1999, Paul Thomas Anderson), ambos merecedores de nomeação ao Oscar. Títulos como NEGÓCIO ARRISCADO (1983, Paul Brickman), RAIN MAN — ENCONTRO DE IRMÃOS (1988, Barry Levinson), ENTREVISTA COM O VAMPIRO (1994, Neil Jordan) e GUERRA DOS MUNDOS (2005, Steven Spielberg) cimentaram o seu estatuto actual.



1 comentário:

O Narrador Subjectivo disse...

É curioso que este filme consiga dizer com mais vivacidade e criatividade o que Crash tenta dizer sobre LA naqueles discursos lamechas. Com a acção nocturna e por isso traiçoeira de Colateral, o Michael Mann assina talvez o seu melhor trabalho. Óptimo texto, Jorge!

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