segunda-feira, janeiro 07, 2008

PROMESSAS PERIGOSAS (2007), de David Cronenberg



Quem observa com atenção a filmografia de David Cronenberg, verá o quão integrado – apesar do contexto narrativo e espacial ser elemento inovador – este PROMESSAS PERIGOSAS encontra-se no seio desse percurso cinematográfico. Viggo Mortensen é a verdadeira surpresa nas "redondezas", conseguindo arrebatar, mais uma vez, pela sua participação segura e corajosa enquanto protagonista. Os desafios incorporados pelo actor, tanto físicos como morais, são um resultado – talvez inconsciente – da confiança gerada entre ele e o realizador em UMA HISTÓRIA DE VIOLÊNCIA (2005). Afinal de contas, quantos actores do mainstream norte-americano concordariam em fazer um nu integral nos termos patenteados neste PROMESSAS PERIGOSAS?

Aliás, a metamorfose da carne humana, tema incessante na obra de Cronenberg, está aqui patente nas mais variadas formas e cada uma, na sua respectiva sequência, sugerindo emoções díspares no espectador. Desde a impetuosidade duma mutilação que resulta em homicídio até aos lânguidos procedimentos das tatuagens observadas numa sequência importante do filme, a transfiguração do corpo humano acompanha a alteração dos estados psicológicos das personagens. De qualquer forma, é possível chegar a uma única conclusão: se mais confirmações fossem necessárias, e após sucessivos elogios onde quer que tenha estreado, estamos perante um dos filmes do ano.



Encerrados numa Londres suja, húmida e escura – esse afastamento do filme face aos típicos postais turísticos da capital do Reino Unido é tão denunciado que nem parece ter sido lá rodado) –, Anna (Naomi Watts) acompanha o parto de uma bebé cuja mãe, de 14 anos, falece pouco depois. Entre os seus pertences, Anna descobre um diário manuscrito em russo e, por um acaso quase augurante, pede a Semyon (Armin Mueller-Stahl), líder da Máfia russa londrina, que o traduza. Não obstante o charme idoso e sapiente que exala, Semyon é o perpetrador da violação que originou a gravidez da adolescente. Cientes desse facto estão Nikolai (Viggo Mortensen), condutor particular da Vory v Zakone, e Kirill (Vincent Cassel), filho de Semyon e com sintomas de psicopatia, cujas personalidades e valores serão confrontados com as acções deploráveis do ancião da organização criminosa…

O argumento não é, em última análise, o seu ponto forte. O que torna PROMESSAS PERIGOSAS num filme maior é a capacidade das personagens, a dado momento, dominarem a película através das suas palavras e acções, conseguindo sobreporem-se à típica e ofegante iluminação da câmara de David Cronenberg (ou seja, a forte claridade do tema central na imagem sob um fundo preenchido por trevas). Para além disso, impossível não expressar este destaque, o cineasta constrói uma das sequências mais memoráveis e, ao mesmo tempo, badaladas de 2007, capaz de encetar padrões para o futuro em cenas idênticas – em certa medida, um pouco o efeito que BLADE RUNNER (1982) provocou na ficção científica. A "auto-defesa" animalesca de Nikolai, perante dois impressionantes adversários numa sauna pública, tem tanto de virtuoso como de repulsivo. Durante aqueles quatro minutos estamos, definitivamente, em puro território Cronenbergiano.



Enquanto cinéfilo, não me importo que David Cronenberg se desvie dos seus habituais cenários irrealistas, que serviam propósitos inusitados dos seus argumentos e criavam reacções mistas nos seus espectadores. Na verdade, não me recordo doutro realizador tão peculiar obter flagrante consenso crítico e comercial sem perder, nesse processo, a visão que o distingue dos seus pares. Confirmado PROMESSAS PERIGOSAS como um título digno de figurar ao lado de BROOD (1980), VIDEODROME (1983), A MOSCA (1986), IRMÃOS INSEPARÁVEIS (1988) e O FESTIM NU (1992), podemos ansiar, calmamente, pela próxima obra de Cronenberg. E se Viggo Mortensen estiver a coadjuvá-lo, mais seguros ficaremos da qualidade desse mesmo projecto.

3 comentários:

rita disse...

o argumento pode não ser o seu ponto forte, mas achei-o bem construído, fazendo perfeito sentido, tal como acho que as interpretações não podiam ser tão boas se não tivessem um bom argumento por base, digo eu.
all and all, foram minutos de cinema muito bem passados.

Gonçalo Trindade disse...

" transfiguração do corpo humano acompanha a alteração dos estados psicológicos das personagens"

Plenamente de acordo, e creio que este excerto da tua crítica contém grande parte da essência do filme e da essência do próprio cinema de Cronenberg. Esta crueza tão realista e humana está constantmente presente no seu cinema e nota-se em Eastern Promises o típico cunho do realizador (mais do que e A History of Violenece ou Spider)... apenas de forma diferente. Um dos filmes do ano, sem dúvida.

Rogério D.F. disse...

Um filme que não desilude, sem qualquer sombra de dúvida.

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