sábado, agosto 04, 2012

MARKETA LAZAROVÁ (1967), de Frantisek Vlácil



Um clã menor checo cai em conflito com o rei na época medieval, e em pano de fundo o cristianismo a substituir o paganismo.MUBI.com



MARKETA LAZAROVÁ é tudo aquilo que se esperaria encontrar num filme estabelecido na Idade Média: fervores religiosos, rivalidades feudais, paganismos supersticiosos, tempos austeros, Humanidade tão agreste quanto a paisagem que a rodeia. Contudo, distancia-se inteiramente de qualquer outra representação medieval pelo realismo implacável e obscura poesia encerrados na sua narrativa. Frantisek Vlácil compõe um tratado cinematográfico quase definitivo sobre perda de inocência, nomeadamente a humana — aqui encarnada na mulher que dá nome ao filme.

O rosto de Magda Vásáryová, ambíguo na forma como sugere simultaneamente pureza e tormenta, rege o filme inteiro, desde o segundo em que irrompe no ecrã pela primeira vez — um derradeiro símbolo visual e feminino de imaculabilidade, magistralmente enquadrada em frente de um pôr-do-sol, de cujo peito sai, quase literalmente, uma pomba branca — até ao clímax final, onde um conflito entre nobres é selado pela rendição amorosa e espiritual da protagonista.



A nível formal, MARKETA LAZAROVÁ herda mais o cinema soviético de Andrei Tarkovsky ou Sergei Parajanov do que as temáticas e estéticas da Nova Vaga Checa. A empolgante fotografia de Bedrich Batka capta todos os rigores invernais de uma floresta anónima — essa localização geográfica permanecerá desconhecida até aos créditos finais — e selvagem, onde até lobos famintos aparentam conservar um peculiar poder de decisão sobre quem é ou não presa (destaque para um dos planos iniciais do filme, que regista a ferocidade de uma alcateia em fuga pela alvura da estepe gelada). A direcção artística é prodigiosa no recurso a cenários naturais. A sonoplastia confere aos diálogos imponência e em cada frase proferida. E, por fim, a banda sonora de Zdenek Liska, mistura de canto gregoriano com sonoridades wagnerianas, decreta o seu ritmo sem se afigurar disruptiva.







MARKETA LAZAROVÁ é considerado, por muitos, como o melhor filme checo de todos os tempos. Veredicto que tendo a concordar. E com o devido respeito pelos COMBOIOS RIGOROSAMENTE VIGIADOS (1966) de Jiri Menzel ou pelo O BAILE DOS BOMBEIROS (1967) de Milos Forman.

10 comentários:

Luís Mendonça disse...

Não concordo com o veredicto, mas é um filme intrigante, sem dúvida.

Sam disse...

Luís, ainda me falta ver muita cinematografia checa, mas do que conheço este é o que mais impressão positivo causa. E suspeito que causará durante muito tempo.

Cumps cinéfilos.

Luís Mendonça disse...

"The Shop on Main Street", por example, é quanto a mim "a minha obra-prima checa". Mas há outras preciosidades superiores a esse filme: "The Cremator" ou "Diamonds of the Night", dos que vi mais recentemente, cada um ao seu estilo, são bastante fortes (ainda sobre o fantasma da guerra).

Apesar de adorar também o "Amores de uma Rapariga Loira"... Aliás, eu que nem sou o maior fã de "Daisies", tenderia a considerá-lo mais relevante do que este "Marketa Lazarova", que confesso ter-me desiludido um pouco.

Sam disse...

Luís, dos filmes que referes, apenas ainda não tive a oportunidade de ver o THE CREMATOR. E o DIAMONDS OF THE NIGHT é uma excelente obra, sem dúvida!

Mas nenhum deles causaram em mim o fascínio que senti com este MARKETA LAZAROVÁ — vi-o ontem e a sua imagética continua bem fixa na minha memória... :)

Já agora, e se me permites a questão, o que te desiludiu no filme?

Cumps cinéfilos.

Luís Mendonça disse...

A sério? Então significa que o "Shop on Main Street" não é, para ti, superior ao "Marketa Lazarova"?

Eu, digamos, "gostava" de nutrir do mesmo entusiasmo, mas a verdade é que o "Marketa..." me pareceu um Tarkovski menor, quer dizer, é claramente influenciado pelo "Andrei Rublev" e ao pé deste, na minha opinião, perde força.

No entanto, tenho curiosidade em relação à restante obra do Vlácil. Já viste mais?

Sam disse...

Luís, há coisas incríveis, não há? :) Acabo por preferir o MARKETA.

E sim, reconheço completamente as semelhanças com o Andrei Rublev. Mas não considero que, por isso, perca pujança.

Vi hoje o VALLEY OF THE BEES, filme que com o MARKETA LAZAROVA compõe uma trilogia do Vlacil sobre a Idade Média. Título interessante, a sua temática espiritual é pertinente e, como sempre, excelente visualmente.

Em comparação, gostei mais do MARKETA.

Luís Mendonça disse...

Bem, na realidade, preferes tu e a maioria, eu é que prefiro a experiência humana do "Shop on Main Street"... De qualquer maneira, quero deixar aqui claro que o "Marketa Lazarova" não deixa de ser um filme a ver e, como dizes, a espaços, visualmente soberbo.

Paulo Soares disse...

Só umas notas sobre o Andrei Rublev e o Marketa Lazarová: Apesar do Tarkovsky ter acabado a primeira montagem do Andrei Rublev em julho de 1966, nesse ano houve apenas uma exibição privada (tanto quanto se sabe, claro) em moscovo para profissionais do cinema, após o que o governo mandou fazer cortes. Em Fevereiro de 1967 o Tarkovsky recusou-se a fazer mais cortes e o filme foi colocado na gaveta até ter apenas uma exibição em cannes em 1969 e ser finalmente distribuido comercialmente em 1971. O Marketa estreou em 1967 (e segundo li começou a rodagem dois anos antes antes). Claro, o František Vláčil pode de alguma forma ter tido acesso ao filme do Tarkovsky, mesmo participado na rodagem (não tenho informação sobre isso), quero apenas fazer notar que a influência de um filme sobre o outro não é tão liquida como poderá parecer.

Sam disse...

Luís, não nego que o SHOP ON MAIN STREET é um óptimo filme. Contudo, tenho — e sempre tive — maior propensão para apreciar filmes com um trabalho visual mais elaborado, arrebatador.

E se vierem acompanhados de um argumento com uma interessante componente humana e espiritual, ainda melhor.

Cumps cinéfilos.

Sam disse...

Paulo, obrigado por esse reparo.

Um reparo bastante importante para o posicionamento histórico e teórico de MARKETA LAZAROVÁ.

Cumps cinéfilos.

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