segunda-feira, dezembro 03, 2012

Visões Exteriores #3



A propósito do anúncio do seu Top 10 relativo a 2012, a Cahiers du Cinéma de Dezembro explica as suas escolhas através da análise profunda dos Dez Defeitos do Cinema de Autor da actualidade.

Dez pistas de reflexão, dez problemas particulares e dez formas de os remediar.

#1: A SINOPSE ('Pitch', no original), por Stéphane Delorme

Problemas: «Com uma sinopse, não há centro, nem segredo, nem mistério, nem salto possível na direcção de uma outra dimensão da história. (...) O drama do cinema de autor contemporâneo é que a maioria dos filmes possuem apenas uma velocidade. Como se um filme não se sustentasse caso enveredasse por várias velocidades. (...) A sinopse é, portanto, o inimigo número um, que paralisa o pensamento desde a sua origem.»

Exemplos: VERGONHA (Steve McQueen); SUPERSTAR (Xavier Giannoli).


(SUPERSTAR)

Soluções: «Existem filmes a duas velocidades (todos aqueles títulos cuja narrativa apresenta-se bipartida, numa das poucas invenções do cinema contemporâneo — TABU é uma das suas representações), a três velocidades (IN ANOTHER COUNTRY), a onze velocidades (HOLY MOTORS. (...) A longa-metragem deverá ser uma viagem sinuosa, longa, sombria, mesmo quando exibe a claridade ofuscante de ELEPHANT, de Gus Van Sant.»

Exemplos: TABU (Miguel Gomes); IN ANOTHER COUNTRY (Hong Sang-soo); HOLY MOTORS (Leos Carax); TWIXT (Francis Ford Coppola).


(TABU)

#2: A CONTINUIDADE DIALOGANTE, por Joachim Lepastier

Problema: «O argumento não é a obra acabada, é um documento de trabalho que deverá fazer nascer o ensejo, e não o quadro inteiro. É o início do filme que se seguirá, e não a sua descrição literal.»

Exemplo: DANS LA MAISON (François Ozon).


(DANS LA MAISON)

Solução: «Uma alternativa simples à receita balizada e desenhada à partida: deixar o filme fluir, com todas as suas variações de contraste, intensidade e conclusão.»

Exemplos: GO GO TALES (Abel Ferrara); THE WE AND THE I (Michel Gondry); APOLLONIDE — MEMÓRIAS DE UM BORDEL (Bertrand Bonello).


(GO GO TALES)

#3: O SÍNDROMA NATASCHA KAMPUSCH (SNK), por Nicolas Azalbert

Problemas: «A tendência não é nova, e não possui nada de intrinsecamente suspeito, mas assistimos à multiplicação, nos últimos tempos, de filmes inspirados em fait-divers tornados extraordinários, de true stories edificantes. (...) Os filmes afectos ao SNK constituem uma verdadeira chantagem facilitadora do "lavar de mãos". Se o espectador é o único juiz e interpretador, o cineasta não pode ser responsabilizado por nada, nem reflecte sobre nada. Ao colocar todos os pontos de vista (uma vez o do carrasco, outra o da vítima), e limitando-se à demissionária essencialização dos factos, poder-se-à acreditar que estes são suficientes para a obtenção de uma transparência conclusiva.»

Exemplos: À MOI SEULE (Frédéric Videau); COMPLIANCE (Craig Zobel); MICHAEL (Markus Schleinzer).


(MICHAEL)

Solução: «Os cineastas poderão contrariar a autoridade do real através do estilo — por outras palavras, fazer-nos sentir que aquela história não poderia ter sido contada por nenhuma outra pessoa.»

Exemplos: À PERDRE LA RAISON (Joachim Lafosse); 17 FILLES (Muriel e Delphine Coulin).


(À PERDRE LA RAISON)

#4: O CULTO DO CONTROLO, por Florent Guézengar

Problemas: «Ao longo dos anos 2000-2010, marcados por um certo ênfase (o "brio"), frequentemente associados a uma imagética repressiva e intimidante (o "controlo") e mesmo à denúncia social dolorosa ou resignada — ao qual se junta, pela sua gravidade, a própria opressão denunciada. (...) Mais preocupante e discutível (por se tratarem de títulos aclamados), alguns "grandes filmes de autor" funcionam também através de mecanismos de calvário e degradação, por vezes motivados pura e simplesmente por um impulso de aniquilação.»

Exemplos: Christopher Nolan, David Fincher, Nicolas Winding Refn, Michael Haneke, Cristian Mungiu, MELANCOLIA (Lars von Trier).


(MILLENNIUM 1 — OS HOMENS QUE ODEIAM AS MULHERES)

Soluções: «O vibrante INQUIETOS (Van Sant), o decadente COSMOPOLIS (Cronenberg) ou os entusiasmantes CAVALO DE GUERRA (Spielberg) e SPORT DE FILLES (Mazuy), por mais diferentes que sejam entre si, abandonam as barreiras da dominação pela formação do sublime. Para lá do sufoco, as suas luzes ecoam um grito por ar!»

Exemplos: INQUIETOS (Gus Van Sant); COSMOPOLIS (David Cronenberg); CAVALO DE GUERRA (Steven Spielberg); SPORT DE FILLES (Patricia Mazuy).


(INQUIETOS)

#5: UMA SERIEDADE PAPAL, por Jean-Sébastien Chauvin

Problemas: «Nada de risos, abordar um assunto doloroso e assumir postura erudita. Eis os cineastas que filosofam com seriedade. (...) O pessimismo demonstrado é inequívoco, sem profundidade nem ambiguidade. Em nenhum lugar, é permitido a ironia, a distância, a dimensão carnal do presente.»

Exemplos: O CAVALO DE TURIM (Béla Tarr e Ágnes Hranitzky); Michael Haneke, Christopher Nolan, Nuri Bilge Ceylan, Steve McQueen.


(O CAVALO DE TURIM)

Solução: «Um cinema generoso (como pode ser exemplo, embora num registo diferente, o cinema luminoso de Straub) possui mil formas de derrotar estes cineastas tão sérios que quase se tornam risíveis.»

Exemplo: Terrence Malick.


(TO THE WONDER)

#6: FILMES SEM IMAGEM, por Stéphane Delorme

Problema: «O que é um filme sem imagem? É um filme sem memória: surpreende a quantidade de filmes que observamos e logo esquecemos de seguida, pela simples razão de que nenhuma imagem ficou registada em nós.»

Exemplos: L'EXERCISE DE L'ÉTAT (Pierre Schoeller); UNE VIE MEILLEURE (Cédric Kahn).


(UNE VIE MEILLEURE)

Solução: «Está a faltar, portanto, uma pujança do imaginário. (...) Os filmes mais belos são aqueles que nos fazem sonhar durante a noite. Como se pode sonhar com filmes sem imagem?»

Exemplos: TWIXT (Francis Ford Coppola); TABU (Miguel Gomes); FAUST (Aleksandr Sokurov); KEEP THE LIGHTS ON (Ira Sachs); L'ÂGE ATOMIQUE (Héléna Klotz); AUGUSTINE (Alice Winocour); MELANCOLIA (Lars von Trier).


(FAUST)

#7: ACTORES INTERMUTÁVEIS, por Florence Maillard

Problema: «Através do desvanecer e alisamento de personalidades (cujas asperezas nunca deveriam assemelhar-se às das personagens — a confusão é proibida), aliados à prudência da reciclagem de castings que perpetuam os nomes do costume, cria-se a sensação de passarmos de um filme para outro observando sempre os mesmos rostos.»

Exemplos: Michael Fassbender e Steve McQueen; Nina Hoss e Christian Petzold.


(VERGONHA)

Soluções: «Os melhores filmes deste ano foram aqueles que manifestaram uma ligação mais intensa entre a mise en scêne e os actores — aquele excepcional momento em que a insegurança e a dúvida são suscitadas no espectador pelo isolamento da personagem face ao seu performer (...) Desejam-se filmes que proporcionem a noção de uma verdadeira colaboração entre actores, que inventem constantemente um "protocolo" particular, e que apresentem uma experiência ao invês da cega difusão de intenções.»

Exemplos: Greta Gerwig em DAMSELS IN DISTRESS (Whit Stillman); Isabelle Hupert em IN ANOTHER COUNTRY (Hong Sang-soo); Thure Linhardt em KEEP THE LIGHTS ON (Ira Sachs).


(KEEP THE LIGHTS ON)

#8: OS NÃO-LUGARES DA MONTAGEM, por Cyril Béghin

Problemas: «A ideologia contemporânea é de que o corte, o momento de interrupção de um plano e irrupção do próximo, deve ser mais visível que o raccord (...) A incompletude dos gestos ou das situações tornou-se na ferramente mais comum da montagem, não contida à "continuidade acelerada" hollywoodiana, a qual procura esconder os raccords mas, também, presente num cinema de autor que a transformou num modo único de expressão e fragmentação dos planos.»

Exemplos: L'ENFANT D'EN HAUT (Ursula Meier); ADEUS, MINHA RAINHA (Benoît Jacquot).


(ADEUS, MINHA RAINHA)

Solução: «Os casos de resistência a estes não-lugares da montagem são os mais impressionantes: (...) fazem respirar os raccords e permitem sentir a luminosa percepção de que o Cinema ainda vive de 'cortes de planos por vezes inesperados, por outras fatais, em vários planos de cada vez' (Serge Daney).»

Exemplos: HOLY MOTORS (Leos Carax); VOUS N'AVEZ ENCORE RIEN VU (Alain Resnais); GO GO TALES (Abel Ferrara).


(HOLY MOTORS)

#9: O RADICAL ELEGANTE, por Vincent Malausa

Problemas: «Nos anos 2000, assiste-se a uma radicalidade formal e narrativa assombrada pela ideia de um cinema puro, original e primitivo. (...) Quando a intenção do autor torna-se demasiado evidente ou se anuncia muito claramente, o efeito reduz-se a um mero dispositivo de sedução e a uma complacência repulsiva.»

Exemplos: POST TENEBRAS LUX (Carlos Reygadas); INDEPENDENCIA (Raya Martin); PARADIES: LIEBE (Ulrich Seidl).


(POST TENEBRAS LUX)

Soluções: «Do radical elegante ao radical chocante, vai um passo: (...) existe o contraste entre uma certa trivialidade (toda a miséria do mundo) e o sublime (o religioso ou o sagrado) (...) Qualquer coisa se imponha para além destes corpos precários e sujeitos ao próprio movimento da vida.»

Exemplos: L'ÉTÉ DE GIACOMO (Alessandro Comodin); JUVENTUDE EM MARCHA (Pedro Costa).


(JUVENTUDE EM MARCHA)

#10: FANTASIA POUCO DIVERTIDA, por Joachim Lepastier

Problemas: «dos sofisticados enquadramentos narrativos que lhes servem de modelo, estas variações "escurecem" o cérebro com um empilhamento de sketches despreocupados e sem perderem tempo na construção das cenas. Falhando em obter genuíno elã, estes filmes formam, como podem, uma aparência de ritmo e de celeridade na montagem. Paradoxalmente, este cinema de fantasia, que deveria cultivar a surpresa e o inesperado, não fazem mais do que recusar essas fórmulas.»

Exemplos: LE GRAND SOIR (Benoît Delépine e Gustave Kervern); 2 DIAS EM NOVA IORQUE (Julie Delpy).


(2 DIAS EM NOVA IORQUE)

Solução: «DAMSELS IN DISTRESS de Whit Stillman oferece uma saudável solução(...): um filme onde a narrativa participa de um espírito simultâneo de colagem e separação de entre diversas influências cómicas e musicais. Um filme onde a fantasia não é apenas uma atitude calculada, mas sim um dinâmico desfile social. (...) A fantasia não é decretada, nascendo das vibrações de incerteza e fragilidade que a rodeia.»

Exemplo: DAMSELS IN DISTRESS (Whit Stillman).


(DAMSELS IN DISTRESS)

Les 10 Tares du Cinéma d'Auteur, in Cahiers du Cinéma, n.º 684 — Dezembro 2012.

2 comentários:

O Narrador Subjectivo disse...

Interessantíssimo, várias perspectivas sobre o cinema.

Loot disse...

Aqui está um bom artigo para iniciar conversas sobre o estado do cinema, concordando ou não com os pontos, tema para falar não falta :)

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