sexta-feira, março 29, 2013

O Cinema dos Anos 2000: Gosford Park, de Robert Altman




Uma festa na casa de campo dos McCordle, ao longo do fim-de-semana, representa o "palco" de GOSFORD PARK, contudo esse está longe de ser o seu principal intento. Da mesma forma, o homicídio que ocorre naquela propriedade, cuja responsabilidade tanto pode ser imputada a cada um dos privilegiados e famosos convidados ou aos seus respectivos empregados, parece saído da pena de Agatha Christie — a narrativa decorre durante os anos 20, e nem falta por lá um inspector da Scotland Yard — mas apenas serve de pretexto para Robert Altman elaborar uma incisiva observação sobre decadência social e hierárquica.

A suspeita que recai sobre todas as personagens, da mais poderosa até à mais submissa, torna palpável, e extremamente fracturante, a intemporal divisão entre ricos e pobres, como também as irónicas, problemáticas e dissimuladas interacções (amorosas, familiares, sociais) pessoais sublinham a irresolução no cerne da natureza humana. Por outras palavras, GOSFORD PARK não poderia ser mais Altmaniano: embora distante dos ambientes que caracterizaram a sua filmografia — do terreno country de NASHVILLE (1975) até à insanidade da grande metrópole em SHORT CUTS — OS AMERICANOS (1993) —, os temas de inocência, corrupção e resistência que marcaram a obra de Robert Altman estão, aqui, em inegável exibição. E do ponto de vista técnico, pela forma como obriga o espectador a perscrutar enquadramentos recheados de personagens e de múltiplos acontecimentos em simultâneo na busca da acção principal, GOSFORD PARK é uma prova sublime do estilo sofisticado do seu realizador.

Para além das aparências e segredos, dos sumptuosos jantares e animados saraus, das intrigas e da frugalidade da "classe trabalhadora", o filme quase poderia resumir-se na última linha de diálogo, proferida pela servente Mary Maceachran, talvez a única de um longo rol de personagens (nota para o fabuloso elenco britânico aqui reunido) que mantém, do princípio ao fim, rectidão moral: "mas que propósito poderia isso servir?" Se essa questão também tardará em abandonar o espectador — ainda para mais, pela natureza quase seca do seu final —, é porque se apreendeu a subtileza da narrativa de GOSFORD PARK. E esse poderá representar o derradeiro fascínio do grande filme de Robert Altman dos anos 2000.

por Samuel Andrade.

Elenco
. Michael Gambon (Sir William McCordle), Kristin Scott Thomas (Lady Sylvia McCordle), Maggie Smith (Constance, Condessa de Trentham), Kelly Macdonald (Marie Maceachran), Helen Mirren (Madame Wilson), Emily Watson (Elsie), Jeremy Northam (Ivor Novello), Bob Balaban (Morris Weissman), Ryan Phillippe (Henry Denton)


Palmarés
. Oscars da Academia: Melhor Argumento Original (Julian Fellowes)
. Globos de Ouro: Melhor Realizador (Robert Altman)
. BAFTA: Melhor Filme Britânico, Melhor Guarda-Roupa (Jenny Beavan)
. Writers Guild of America: Melhor Argumento Original (Julian Fellowes)
. Screen Actors Guild: Melhor Actriz Secundária (Helen Mirren), Melhor Elenco
. Satellite Awards: Melhor Actriz Secundária — Comédia ou Musical (Maggie Smith), Melhor Elenco


Sobre Robert Altman (1925 - 2006)

Com uma carreira marcada pelo constante revisionismo dos géneros que abordou, personagens memoráveis e projectos cuja complexidade só é apreendida através de cuidada análise, M*A*S*H (1970), A NOITE FEZ-SE PARA AMAR (1971), NASHVILLE (1975), O JOGADOR (1992) e SHORT CUTS — OS AMERICANOS (1993) foram pontos altos de uma carreira com mais de cinquenta títulos.



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