"O amor não mata", diz Benoît Magimel a certo momento — não sabemos se havemos de identificar alguma espécie de sarcasmo que seja prenunciador do final (hoje tornado mito), ou então se devemos reconhecer a ingenuidade de um pensamento (como se a verdadeira gravidade do amor fosse esse fantasma ao qual nunca conseguimos aceder, ou compreender, por completo). De qualquer modo, importa começarmos pela personagem de Magimel para tentarmos compreender a dimensão musical, e por isso invisível, que constitui o coração de A PIANISTA — que, melhor dizer já, é uma das maiores obras de Michael Haneke (ao lado, para mim, de O SÉTIMO CONTINENTE e ainda de AMOR). É curioso perceber como o olhar de Magimel (o ator que vira pianista), tão penetrante e quente (Haneke filma-o em toda a sua sedução na cena do concerto privado, por exemplo), está tão longe da distância de Alexandre Tharaud (o pianista que vira ator) em AMOR. As diferenças parecem-me evidentes: se, no último filme, Haneke desenha o encontro entre uma professora (Riva) e o seu aluno (Tharaud) para nos dar a irremediável sensação de passado e de perda, em A PIANISTA qualquer encontro entre aluno / professora tem em vista um futuro desconhecido — cuja existência depende de códigos e regras secretas que raramente são verbalizadas.
Entre esses "códigos" está a música de Schubert ou de Bach (os compositores preferidos de Haneke) — música que não "tapa" buracos de silêncio, antes os coloca em primeiro plano, como se estivéssemos diante sempre de uma realidade maior que a própria realidade. (Sobre esta sensação de hiperrealidade, proporcionada pelo naturalismo dos atores e artifício da técnica, recomendo vivamente o visionamento da entrevista a Michael Haneke disponível no DVD editado pela Atalanta Filmes.) Ou então: de um espelho. Quando Isabelle Huppert, protagonista, caminha impaciente pelos corredores da sex shop para se enfiar numa cabine de peep-show acedemos a uma espécie de caminho onde nos encontramos no fim — o voyeur, à espera do pornográfico e do desafio às nossas fronteiras, sou eu, espectador. É assustador perceber que A PIANISTA é, talvez, um dos filmes mais pudicos de Haneke — o sexo, tal como ele é, existe como uma ilusão nas imagens (dos ecrãs da cabine ou nas revistas porno) que coabitam na realidade deste filme. A sua pureza (não confundir com olhar moralista — é muito fácil resvalar para esse sentido quando falamos deste realizador) é identificada no esconder, no próprio enquadramento, daquilo que podia ser apontado facilmente como olhar "gratuito" sobre o sexo.
A que nos conduz esta "censura"? Penso na cena em que Huppert / Magimel se encontram na casa-de-banho do conservatório de música — Haneke filma-os como crianças (o aluno salta para cima da porta como se subisse a uma árvore, a professora tenta definir as regras do jogo a custo...), ou então como animais. A robustez dessa cena reside, então, precisamente na valorização do detalhe do "acting" — que, já agora, foge a qualquer vontade de interpretação psicologista ou simbólica. Como se cada gesto carregasse consigo uma violência assustadoramente próxima da vida (por exemplo: observem-se os detalhes da interpretação de Huppert quando a sua personagem parte o copo para colocar os pedaços dentro do bolso do casaco da aluna — a mão no ouvido, a direção do olhar, o caminhar...).
A outra cena magistral, talvez a maior de todo o filme, é o plano-sequência, perto do final, onde vemos Huppert visitar Magimel nos balneários do campo de hóquei no gelo — o tempo dentro do plano dá espaço ao desespero alucinante de Huppert, que não se cansa de dizer: "amo-te, amo-te", como se apenas quisesse ser salva das mãos da solidão. O final deste plano, cortado de forma tão bruta, irrompe-nos para um mar de branco que nos fere os olhos — é Huppert a tentar caminhar sobre o gelo como se soubesse que uma queda é iminente. E inevitável.
"O amor é feito de coisas banais", diz também Huppert a certa altura, um dos rastos de humor deste filme (eis o abismo: nunca sabemos quando será apropriado soltar um riso — mesmo o final tem o sabor do ridículo e grotesco que pincelam a mise-en-scène de A PIANISTA). Banalidades que acabam por lançar a protagonista, e por nos lançar a nós, para uma vertigem fatal, muito longe (ou dentro) da precisão da música de Schubert e dos enquadramentos de Haneke — e são esses detalhes, essas banalidades do amor, que acabam por partir a "pedra" do filme para o transformar num melodrama desestabilizador do nosso próprio conforto. Para nos questionar: quem és tu, espectador que me vês, quem serás tu depois de saíres de mim? Ainda não sei. Experiência radical, experiência de uma vida.
Elenco
. Isabelle Huppert (Erika Kohut), Annie Girardot (Mãe), Benoît Magimel (Walter Klemmer), Susanne Lothar (Sra. Schober), Udo Samel (Dr. Blonskij), Anna Sigalevitch (Anna Schober)
Palmarés
. Festival de Cannes: Grande Prémio do Júri (Michael Haneke), Melhor Actor (Benoît Magimel), Melhor Actriz (Isabelle Huppert)
. Césares: Melhor Actriz Secundária (Annie Girardot)
. Prémios da Academia Europeia: Melhor Actriz (Isabelle Huppert)
Numa carreira largamente premiada (de Cannes a Hollywood, já ganhou quase tudo), os seus filmes são, comummente, estudos sobre violência, repressão e responsabilidade nas sociedades modernas. Da filmografia de Michael Haneke, destacam-se O SÉTIMO CONTINENTE (1989), BRINCADEIRAS PERIGOSAS (1997), CÓDIGO DESCONHECIDO (2000), NADA A ESCONDER (2005), O LAÇO BRANCO (2009) e AMOR (2012).
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