terça-feira, abril 02, 2013

O Cinema dos Anos 2000: A Pianista, de Michael Haneke




"O amor não mata", diz Benoît Magimel a certo momento — não sabemos se havemos de identificar alguma espécie de sarcasmo que seja prenunciador do final (hoje tornado mito), ou então se devemos reconhecer a ingenuidade de um pensamento (como se a verdadeira gravidade do amor fosse esse fantasma ao qual nunca conseguimos aceder, ou compreender, por completo). De qualquer modo, importa começarmos pela personagem de Magimel para tentarmos compreender a dimensão musical, e por isso invisível, que constitui o coração de A PIANISTA — que, melhor dizer já, é uma das maiores obras de Michael Haneke (ao lado, para mim, de O SÉTIMO CONTINENTE e ainda de AMOR). É curioso perceber como o olhar de Magimel (o ator que vira pianista), tão penetrante e quente (Haneke filma-o em toda a sua sedução na cena do concerto privado, por exemplo), está tão longe da distância de Alexandre Tharaud (o pianista que vira ator) em AMOR. As diferenças parecem-me evidentes: se, no último filme, Haneke desenha o encontro entre uma professora (Riva) e o seu aluno (Tharaud) para nos dar a irremediável sensação de passado e de perda, em A PIANISTA qualquer encontro entre aluno / professora tem em vista um futuro desconhecido — cuja existência depende de códigos e regras secretas que raramente são verbalizadas.

Entre esses "códigos" está a música de Schubert ou de Bach (os compositores preferidos de Haneke) — música que não "tapa" buracos de silêncio, antes os coloca em primeiro plano, como se estivéssemos diante sempre de uma realidade maior que a própria realidade. (Sobre esta sensação de hiperrealidade, proporcionada pelo naturalismo dos atores e artifício da técnica, recomendo vivamente o visionamento da entrevista a Michael Haneke disponível no DVD editado pela Atalanta Filmes.) Ou então: de um espelho. Quando Isabelle Huppert, protagonista, caminha impaciente pelos corredores da sex shop para se enfiar numa cabine de peep-show acedemos a uma espécie de caminho onde nos encontramos no fim — o voyeur, à espera do pornográfico e do desafio às nossas fronteiras, sou eu, espectador. É assustador perceber que A PIANISTA é, talvez, um dos filmes mais pudicos de Haneke — o sexo, tal como ele é, existe como uma ilusão nas imagens (dos ecrãs da cabine ou nas revistas porno) que coabitam na realidade deste filme. A sua pureza (não confundir com olhar moralista — é muito fácil resvalar para esse sentido quando falamos deste realizador) é identificada no esconder, no próprio enquadramento, daquilo que podia ser apontado facilmente como olhar "gratuito" sobre o sexo.

A que nos conduz esta "censura"? Penso na cena em que Huppert / Magimel se encontram na casa-de-banho do conservatório de música — Haneke filma-os como crianças (o aluno salta para cima da porta como se subisse a uma árvore, a professora tenta definir as regras do jogo a custo...), ou então como animais. A robustez dessa cena reside, então, precisamente na valorização do detalhe do "acting" — que, já agora, foge a qualquer vontade de interpretação psicologista ou simbólica. Como se cada gesto carregasse consigo uma violência assustadoramente próxima da vida (por exemplo: observem-se os detalhes da interpretação de Huppert quando a sua personagem parte o copo para colocar os pedaços dentro do bolso do casaco da aluna — a mão no ouvido, a direção do olhar, o caminhar...).

A outra cena magistral, talvez a maior de todo o filme, é o plano-sequência, perto do final, onde vemos Huppert visitar Magimel nos balneários do campo de hóquei no gelo — o tempo dentro do plano dá espaço ao desespero alucinante de Huppert, que não se cansa de dizer: "amo-te, amo-te", como se apenas quisesse ser salva das mãos da solidão. O final deste plano, cortado de forma tão bruta, irrompe-nos para um mar de branco que nos fere os olhos — é Huppert a tentar caminhar sobre o gelo como se soubesse que uma queda é iminente. E inevitável.

"O amor é feito de coisas banais", diz também Huppert a certa altura, um dos rastos de humor deste filme (eis o abismo: nunca sabemos quando será apropriado soltar um riso — mesmo o final tem o sabor do ridículo e grotesco que pincelam a mise-en-scène de A PIANISTA). Banalidades que acabam por lançar a protagonista, e por nos lançar a nós, para uma vertigem fatal, muito longe (ou dentro) da precisão da música de Schubert e dos enquadramentos de Haneke — e são esses detalhes, essas banalidades do amor, que acabam por partir a "pedra" do filme para o transformar num melodrama desestabilizador do nosso próprio conforto. Para nos questionar: quem és tu, espectador que me vês, quem serás tu depois de saíres de mim? Ainda não sei. Experiência radical, experiência de uma vida.

por Flávio Gonçalves (O Sétimo Continente).

Elenco
. Isabelle Huppert (Erika Kohut), Annie Girardot (Mãe), Benoît Magimel (Walter Klemmer), Susanne Lothar (Sra. Schober), Udo Samel (Dr. Blonskij), Anna Sigalevitch (Anna Schober)


Palmarés
. Festival de Cannes: Grande Prémio do Júri (Michael Haneke), Melhor Actor (Benoît Magimel), Melhor Actriz (Isabelle Huppert)
. Césares: Melhor Actriz Secundária (Annie Girardot)
. Prémios da Academia Europeia: Melhor Actriz (Isabelle Huppert)


Sobre Michael Haneke

Numa carreira largamente premiada (de Cannes a Hollywood, já ganhou quase tudo), os seus filmes são, comummente, estudos sobre violência, repressão e responsabilidade nas sociedades modernas. Da filmografia de Michael Haneke, destacam-se O SÉTIMO CONTINENTE (1989), BRINCADEIRAS PERIGOSAS (1997), CÓDIGO DESCONHECIDO (2000), NADA A ESCONDER (2005), O LAÇO BRANCO (2009) e AMOR (2012).



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