terça-feira, agosto 25, 2009

INIMIGOS PÚBLICOS (2009), de Michael Mann



Com INIMIGOS PÚBLICOS, Michael Mann retoma o seu estatuto de cineasta maior (a par de Scorsese) na concepção de gangster movies, género cinematográfico intrinsecamente norte-americano e cujos mecanismos primários estão profundamente enraizados no imaginário de todas as faixas etárias de espectadores.



Mas Michael Mann, por sua vez, detém estilos de filmagem e narrativos muito próprios, numa carreira que nunca se ancorou a um género específico. Mann abordou o thriller (MANHUNTER, 1986), o histórico (O ÚLTIMO DOS MOICANOS, 1992), o semi-documentário de intervenção (O INFORMADOR, 1999), o biopic (ALI, 2001) e, com proeminência, o noir moderno (HEAT — CIDADE SOB PRESSÃO, 1995 e COLATERAL, 2004) — e em INIMIGOS PÚBLICOS, o cineasta reúne, pela primeira vez, todas as temáticas que marcaram o seu percurso de quase 30 anos, ao mesmo tempo que nitidamente homenageia obras seminais da Sétima Arte que representaram o confronto entre criminosos gerados pela Depressão e a Lei Seca e os G-men dos primórdios do FBI.

Os elementos das origens deste período tenebroso e fascinante da História dos Estados Unidos da América são fabulosamente expostos em INIMIGOS PÚBLICOS, sem dúvida um título atípico para esta altura do ano (afinal, Agosto não é o mês do 'filme-pipoca'?), pois "obriga-nos" a reflectir acerca de motivações dos personagens, a unir linhas narrativas paralelas, a recordar o papel de figuras que surgem esporadicamente durante 140 minutos de película e a ultrapassar a introdução, neste género cinematográfico, do elemento revolucionário mas "distractivo" que é o uso das câmaras digitais de alta definição — mas sobre este pormenor falarei mais adiante...



Baseado no livro «Public Enemies: America's Greatest Crime Wave and the Birth of the FBI, 1933–34», por Bryan Burrough, INIMIGOS PÚBLICOS centra-se na lenda de John Dillinger, um dos criminosos mais famosos dos anos 30, que se dedicou aos assaltos a bancos e fugas de penitenciárias (algumas caracteristicamente mirabolantes) durante uma década até à sua execução pelo FBI à saída de um cinema de Chicago. Exibindo a mesma irrepreensibilidade quando encarna um ser mecânico inacabado (EDUARDO MÃOS-DE-TESOURA, 1990) ou um barbeiro sanguinário (SWEENEY TODD, 2007), Johnny Depp está impecável num exercício de contenção e encanto para representar o mediático Dillinger que os jornalistas da época descreveram e o herói de uma época de desespero que o tempo se encarregou de fabulizar.

Do outro lado da barricada, o espectro da lei denomina-se Melvin Purvis, um oficial em rápida ascensão no FBI e que cedo é nomeado por um jovem e ambicioso J. Edgar Hoover (Billy Crudup, o Dr. Manhattan em WATCHMEN — OS GUARDIÕES, consegue inegável protagonismo num papel de esporádica presença) para deter Dillinger e o seu bando. Christian Bale está seguro na unidimensionalidade que lhe é exigida, visto Melvin Purvis surgir como o oficial de justiça rigoroso e emocionalmente impassível desde a sua primeira aparição — em que diligentemente abate «Pretty Boy» Floyd — até ao sair de cena, desaparecendo, anónimo e com aquele semblante próprio de dever cumprido, entre a multidão sequiosa de ver o cadáver de John Dillinger.

Também é conferido espaço à vida pessoal e romântica de Dillinger, o qual apaixona-se por Billie Frechette e esta, "arrastada" pelo seu charme incisivo, deixa-se levar pela "viagem" que o gangster lhe oferece. Marion Cotillard demonstra eficácia numa interpretação corajosa que poderá não ser imediatamente reconhecida, já que Frechette é uma mulher que prevê o destino trágico de Dillinger mas permanece sempre a seu lado, mesmo que tal resolução custe a perda da sua dignidade humana e liberdade.



Numa análise final, INIMIGOS PÚBLICOS sobressai por tratar-se de uma nova experiência visual do gangster movie proporcionada pelas câmaras de alta definição que Michael Mann tem adoptado desde COLATERAL — uma decisão que revela as potencialidades deste instrumento para o Cinema actual e futuro. Graças à alta definição, a textura de sequências como a do ofegante tiroteio nocturno nos meandros de um bosque (talvez a melhor do seu tipo desde o clímax de L.A. CONFIDENCIAL) entre os aliados de Dillinger e os homens de Purvis nunca teria sido alcançada em película, assim como a profundidade de campo para os enquadramentos baseados em composições arquitectónicas, tão queridos de Mann, nunca ganharia a relevância aqui exibida.

Seria fácil utilizar o substantivo "virtuoso" para qualificar INIMIGOS PÚBLICOS, mas sou da opinião que não é esse o caso presente. Bem pelo contrário, Mann reinventa o género sem abdicar dos seus mecanismos clássicos, estabelecendo padrões que, aposto, iremos ver referenciados em próximos filmes.

Mas, no meio de tanta técnica, temos o (cada vez mais) infalível Johnny Depp. Alguma crítica referiu "ausência de química" entre o seu Dillinger e Marion Cotillard. Até pode ser verdade, todavia Depp é um actor com quem outros performers ficam sempre bem. E eis a prova de que o Cinema é, sem dúvida, uma arte visual, mas potenciada por seres de carne e osso.

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