terça-feira, outubro 06, 2009

O CASAMENTO DE RACHEL (2008), de Jonathan Demme



Famílias disfuncionais, em permanente conflito e com considerável número de "esqueletos no armário" têm constituído matéria fértil — BELEZA AMERICANA (1999) elucidou este potencial de sucesso — para o cinema independente norte-americano. Jonathan Demme agarra estes ingredientes para construir, em O CASAMENTO DE RACHEL, uma abordagem ao tema repartida entre os níveis habituais de produção de Hollywood e a técnica inspirada no Dogma 95, demonstrando que a boa forma narrativa ainda reside no realizador de O SILÊNCIO DOS INOCENTES (1991), após vários anos de projectos menos conseguidos.

Dos vários motivos de interesse de O CASAMENTO DE RACHEL, o destaque imediato vai para Anne Hathaway, cujo fabuloso desempenho aqui patenteado não suscita qualquer surpresa neste momento, face aos prémios arrecadados pela actriz e que culminou na sua nomeação para o Óscar. Logo na primeira aparição — ou seja, a sequência de abertura — Hathaway estilhaça, por completo, o eficaz e delicodoce aspecto cómico-romântico que perfilhou em títulos como O DIÁRIO DA PRINCESA (2001), O DIABO VESTE PRADA (2006) ou NOIVAS EM GUERRA (2009): um olhar desafiador e constantemente dirigido para um ponto longínquo e fora do alcance da objectiva, fumando cigarro atrás de cigarro de modo displicente e vociferando palavras amargas e corrosivas sempre que a circunstância o possibilita. Com tal semblante, cedo percebemos que não é ela a Rachel mencionada no título.



Na verdade, Hathaway é Kym, que num específico fim-de-semana substitui a clínica de desintoxicação pela casa onde cresceu para comparecer ao casamento da irmã mais velha, Rachel (Rosemarie DeWitt). Toxicodepentente desde a adolescência, Kym tem conseguido manter-se "limpa" há nove meses, mas essa sobriedade não altera a sua personalidade básica. É exibicionista e egocêntrica, mas no seu interior, habitam profundos sentimentos de dor e culpa que nenhuma arrogância ou narcisismo ferido conseguem dissimular.

Nos três dias que compõem a narrativa de O CASAMENTO DE RACHEL, somos confrontados com as razões que justificam o desconforto da presença de Kym junto dos restantes convidados do casamento: desde a exagerada protecção que o seu pai (Bill Irwin) lhe dedica, passando pela ciumeira que Kym demonstra ao descobrir que Rachel escolheu, para dama de honor, a melhor amiga Emma (Anisa George), em seu detrimento, até à superficialidade revelada pela própria mãe (Debra Winger, de regresso a interessantes papéis) que lhe veda o intuito duma reconciliação afectiva entre as duas.



Mas Kym não é uma personagem por quem sentiriamos, num ápice, simpatia. Afinal de contas, ela é totalmente inapta para a introspecção que uma pessoa tem de enfrentar quando procura recuperar do abuso prolongado de drogas pesadas — descobrimos, a certa altura, que Kym ludibriou um dos passos fundamentais da sua reabilitação — ou em assumir, junto da família, o remorso por a sua dependência ter tido influência directa no trágico e catalisador evento que provocou a destruição do seu lar. Deste modo, as nossas atenções concentram-se também em Rachel e, obrigatoriamente, nos preparativos do seu matrimónio. Assim, um filme que tenha um casamento como pano de fundo é prolífero na criação de um extenso rol de personagens, sequências dramáticas e o suspense de que algo pode correr mal a qualquer momento. Jonathan Demme demonstra perícia na conjugação destes elementos e não admira que o filme seja dedicado a Robert Altman, mestre na concepção de ensemble castings e histórias paralelas da Sétima Arte.

O drama e a emoção são omnipresentes em O CASAMENTO DE RACHEL, características acompanhadas por uma banda sonora de cariz diegético (mas sem indícios de "dramalhão") e com todas as cenas filmadas de câmara ao ombro e em longos takes. Esta opção estética quase minimalista, que nos "transporta" para o centro das querelas e reconciliações familiares, provam a vontade de Demme em elevar este microcosmo doméstico para uma alegoria da América contemporânea: multicultural, multiracial mas incapaz/receosa de confessar os erros do passado e do presente.
Feito notável, para uma obra com ambições tão modestas. Recomendadíssimo.

2 comentários:

Maria Brandão disse...

bom, dps desta crítica, vou tentar ultrapassar o preconceito em relação à "delicodoce" hathaway e ver o filme :)

Sam disse...

O "preconceito" fica inteiramente ultrapassado. Hathaway tem muito potencial para diversos tipos de casting.

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