terça-feira, fevereiro 16, 2010

UM HOMEM SÉRIO (2009), de Joel e Ethan Coen



Recordam-se da história de Job, homem correcto e trabalhador que, por um "desacato" entre Deus e Satanás, é submetido a todo o infortúnio possível e imaginário sem nunca perder a fé nem a perseverança? É a partir deste episódio do Velho Testamento, reformulado e transposto para os subúrbios do Minnesota nos anos 60 em que os adolescentes iniciavam as suas experiências com a marijuana e os Jefferson Airplane tocavam nas rádios, que Joel e Ethan Coen retomam os seus curiosos estudos sobre o absurdo da condição humana.

Depois dos "explosivos" ESTE PAÍS NÃO É PARA VELHOS (2007) e DESTRUIR DEPOIS DE LER (2008), UM HOMEM SÉRIO destaca-se pelo seu sereno formalismo e narrativa surrealista num contexto de precisão histórica. Não sendo uma total novidade na filmografia dos Coen — BARTON FINK (1991) e O BARBEIRO (2001) já abraçavam essas temáticas —, há algo de muito fresco e, simultaneamente, coenesco nesta descrição da autêntica série de "desgraças" que se abate sobre o quotidiano de um único indivíduo. Desde a fotografia de Roger Deakins (cujo trabalho não me canso de elogiar) à minimalista e sinistra banda sonora de Carter Burwell, imperam os momentos em que mais parece estarmos a ver um filme de terror psicológico do que um drama sobre a infelicidade humana.



O Job moderno de UM HOMEM SÉRIO assume o nome de Larry Gopnik, professor universitário de Física, imensamente respeitado tanto pela sua dedicação à religião judaica como pelo seu currículo profissional. No entanto, imperceptivelmente, as "nuvens escuras" da catástrofe pairam sobre ele: a esposa pede-lhe o súbito divórcio, pronta a casar-se com o melhor amigo do protagonista; a filha planeia, secretamente, uma operação plástica ao nariz para ficar com aparência menos judia; e o irmão Arthur muda-se para aquele lar conturbado, trazendo consigo a sua instabilidade física e mental. Paralelamente, na universidade, alguém está a enviar para a reitoria cartas anónimas e difamatórias da imagem de Larry que poderão arruinar uma desejada promoção, e um aluno de origem asiática tenta suborná-lo para que lhe seja atribuída nota de bom aproveitamento.

Perante este rol interminável de situações adversas, Larry desespera («Eu tento ser um homem sério! Tento ser um membro exemplar da comunidade!», exclama ele a certa altura), procurando conselho nas palavras de sábios rabinos, mas Deus apenas lhe responde através de sound bites incompreensíveis e difusos que só amplificam a sua consternação. E o final, abrupto e à mercê de várias interpretações, também não confere todas as explicações que Larry (e, por consequência, os espectadores) ofegantemente busca.



Humor e simbolismo nos filmes de Joel e Ethan Coen ganham, definitivamente, melhores contornos sempre que resvalam para o seu lado mais negro. UM HOMEM SÉRIO prova-o com o seu curioso prólogo, situado algures nos inícios do Século XX, onde um casal de judeus eslavos recebe a visita de um forasteiro que a mulher jura, a pés juntos, já ter falecido. Aterrorizada, tenta provar ao marido, literalmente à facada, que o convidado não passa duma aparição (um "dybbuk", de acordo com o folclore judeu), mas com resultados, no mínimo, ambíguos.

Aparentemente desconexa de tudo o que se segue, essa introdução — acompanhada da citação «Recebe com simplicidade tudo o que te acontecer» — apresenta-se como mote para a hipotética questão primordial do filme: será Larry o derradeiro arquétipo das adversidades que foram predestinadas à nossa espécie por entidades superiores, as quais pretendem receber passividade e fé incondicional (ao contrário da mulher, no prólogo, que expulsa irascivelmente o "Mal" que lhe entra em casa) como caminho para a redenção? Ou UM HOMEM SÉRIO não passará do mero ensaio sobre o sempre imprevisível destino humano?



Teologias à parte, UM HOMEM SÉRIO poderá bem ser o filme mais original — certo é tratar-se de um dos melhores títulos de 2009 — engendrado pelos Coen, os quais já detêm uma das carreiras mais diversas e singulares da actualidade. Encontramos aqui todos os elementos que caracterizam o seu percurso desde SANGUE POR SANGUE (1984), com a ligeira diferença de a tortura ser mais de foro espiritual que corporal. E para não destoar, conseguem arrancar o melhor dos seus actores, nomeadamente de Michael Stuhlbarg num fantástico desempenho de contenção e desespero latente. A injusta escassez de maior reconhecimento pelo seu trabalho neste filme só pode tratar-se de alguma brincadeira divina de mau gosto, concebida para testar as convicções do cinéfilo adepto de interpretações perfeitas...

2 comentários:

Miguel Domingues disse...

No meu tasco, já lá está a minha opinião; não está é tão pormenorizada quanto esta, pois parte do meu cérebro já deve ter bloqueado as sensações que senti ao vê-lo.

Abraço

Flávio Gonçalves disse...

Gostei muito de ler a análise, muito boa mesmo. Resta-me, apenas, ver o filme ;)

Abraço

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