A minha resposta é sim.
Vem esta reflexão a propósito de uma acalorada e fracturante discussão, num grupo de bloggers cinéfilos de uma popular rede social, em reacção ao texto do crítico João Lopes, intitulado «Transformers 3: para matar o cinema» e publicado no blog sound + vision.
Se uma "parangona" destas, por si só, é suficiente para fazer qualquer cinéfilo estremecer na cadeira, revela-se mais preocupante a forma redutora como o tema é abordado e fundamentado(?) — que mais parece ter sido dactilografado num autêntico acesso de "raiva" —, generalizando a "formação" cinematográfica do espectador que, supostamente, assiste regularmente a um determinado género de longas-metragens.
De entre os vários pontos de vista a favor e contra (desde já, todos legítimos) que um texto destes pode suscitar — e são muitos, tendo em conta que a referida discussão no grupo de cinéfilos conta, e à hora da publicação deste post, 196 comentários —, pode-se ler a crítica à posição de que um filme só é "filme" quando apresenta vertente intelectual em detrimento de uma das primeiras funções do Cinema (leia-se entretenimento ou evasão do quotidiano), salienta-se a diferença entre as audiências de hoje e as de há 30 ou 40 anos, argumenta-se sobre as actuais políticas de distribuição cinematográfica e culmina na total aprovação do que é dito pelo crítico no blog sound + vision.
No entanto, existe um factor subjacente ao blockbuster que tem sido constantemente descurado nesta e noutras discussões: a importância que o encaixe financeiro deste género de filme representa para o futuro do Cinema, nomeadamente a garantia de que as gerações contemporâneas e futuras possam ver títulos 100, 50 ou 10 anos após a sua data de produção. Por outras palavras, refiro-me à preservação e restauro de obras cinematográficas: um trabalho minucioso, delicado e, na maioria das vezes, muito dispendioso (tanto pelas sua especificidade tecnológica, como pela pesquisa e aquisição dos direitos de autor de materiais em película de vários formatos).
Embora existam diversas entidades que se dedicam exclusivamente à preservação e ao restauro — do National Film Preservation, sediado nos EUA, até às cinematecas e aos arquivos mundiais —, os principais impulsionadores desse trabalho encontram-se nas majors de Hollywood, seja através da doação do seu acervo às associações acima referidas ou pelo investimento de tempo e recursos humanos para a conservação de títulos norte-americanos (datados do período do cinema mudo até ao estreado nos anos 80), isto apesar de a indústria também estar a lidar com os efeitos da crise económico-financeira actual.
Quase sem excepção, os grandes estúdios possuem serviços dedicados à preservação e restauro de uma fatia substancial da memória cinéfila do Século XX, cuja actividade só é possível graças às receitas consideráveis geradas — e é por aqui que passa a sua importância para o futuro do Cinema — pelos blockbusters anualmente produzidos e distribuídos em massa por esses mesmos estúdios. Eis alguns exemplos flagrantes:
. o departamento de preservação da Paramount Pictures;
. os arquivos da Warner Brothers, cedidos à Escola de Artes Cinematográficas da University of Southern California;
. a equipa de operações técnicas da Universal Pictures;
. e os serviços de preservação fílmica da Sony Pictures (estúdio que herdou o arquivo de companhias como a Columbia Pictures).
Importa, portanto, não menosprezar o papel do filme de grande orçamento (tenha ele melhor ou pior argumento, bons ou maus efeitos visuais, maior ou menor capacidade de intelectualmente desafiar o espectador) para a sobrevivência da designada Sétima Arte.
Sem conservação, preservação e restauro, não haverá Cinema de qualquer espécie, seja ele clássico, de autor, alternativo ou para consumo imediato durante as férias de Verão. E, numa conjuntura em que os governos cada vez menos investem em Cultura, todos os fundos para que essa noção nunca se torne realidade são, a meu ver, bem-vindos.
Da minha parte, continuarei a ver blockbusters sabendo o que me espera (o conceito de "espectador informado" também não me é indiferente e eu até gostei da "desmioleira" de SUCKER PUNCH — MUNDO SURREAL), mas porque sei que o dinheiro que dei por um bilhete ou DVD não vai só para os bolsos de "produtores gananciosos e megalómanos". Tenho a certeza de que, no mínimo, um cêntimo da minha compra será encaminhado para os serviços de preservação e restauro de um grande estúdio, de modo a impedir o irremediável desaparecimento de obras-primas, algumas das quais estão em risco de nunca mais serem observadas por o seu destino estar na mão do "erário público"...
Por favor, pensem nisto.
sexta-feira, julho 01, 2011
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14 comentários:
Uma perspectiva interessante sobre um assunto raras vezes abordado. Vou compartilhar lá no FB do estaminé
Obrigado pela partilha!
Cumps cinéfilos.
Bela reflexão!
Muito bem visto sem dúvida, pela articulação a esta realidade tão desvalorizada.
Na actualizada, pensa-se num filme e imagina-se em DVD e para assim estar tem de passar pela recuperação, digitalização, transferencia, etc.
Na discussão bem que aludi ao valor de um blockbuster para a 7ªarte (e nem tinha ido tão longe como tu Samuel):
"Concluindo, por imensas vezes discordo plenamente com ele [João Lopes]... ele também se esquece nessa afirmação [matar o cinema] que filmes como este TF3 em vez de matar salvam mais o cinema do que parece. É bom que hajam filmes que levem as pessoas ao cinema e encham salas... para ele ter o cinema dele, muito ajudam os TF3 deste mundo."
(...)
"o que o critico João Lopes, disse no seu texto, não é assim nada de tão errado, se tivesse sido generalista. Agora é a precisão sobre o TF3 que muito me desagradou. Podia ser qualquer outro mas decidiu fazê-lo a um dos maiores blockbusters do ano, que tem o seu público e aí agitou imensa gente com o seu julgamento sobre o cinema somente comercial, blockbusters, etc.
(...)
"Gosto de o ler e ouvir (na Tv incluido), quando se dedica ao cinema mais conceituado, arty, mais sério, etc. Escreve muito bem, articula e contextualiza os factos e sabe bem do que fala (nota-se bem disso). Aprende-se com ele até pois nesses ele é um prazer de ler (e por isso sigo o Sound + Vision há tanto tempo). Agora quando ele desce os "degraus" do cinema... [cinema mainstream e comercial] na maior parte das vezes já não me agrada nada."
Concordo e parabéns por teres puxado por um argumento que não foi abordado na discussão. O que mais me irritou no meio disto é que o João Lopes até pode ter razão em alguns aspectos, mas não pode dizer que quem não foi formado a ver aqueles filmes, não os pode ver. É um argumento estúpido. Até parece que ver Bergman e filmes de outros realizadores menos comerciais só está ao alcance de uns iluminados. Bolas, eu como cinéfilo tanto vejo um Bergman como um blockbuster. Cresci a ver muito filme ruinzinho e só comecei a ver outro tipo de filmes mais alternativos há pouco tempo. Porque gosto de cinema e me habituei a ver coisas menos comerciais por mim próprio, hoje vejo um pouco de tudo. E mesmo que não goste tanto de blockbusters como gostava antigamente, não critico quem os vê e gosta daquela forma. Tem de haver gostos e públicos para tudo.
Outro dos problemas no meio disto tudo é a distribuição que temos e a morte de alguns cinemas que ainda vão passando filmes menos acessíveis. Por exemplo eu estou em Lisboa e se não fosse a Cinemateca como é que via filmes clássicos? Mesmo filmes que saem de circulação, ninguém os passa, o que é uma pena. Antigamente ainda haviam cinemas que passavam filmes 'fora de época', mas infelizmente isso hoje já não acontece. E já nem quero ir para o panorama fora de Lisboa, que sei que é bem pior.
No meio disto tudo já me pus para aqui a divagar demasiado. Às vezes é mais por desabafo, pois no meio da bagunça, como se viu naquela discussão, não dá para esgrimir grandes argumentos. E depois daquilo, a tendência da minha parte vai ser deixar de participar tanto.
Abraços a todos
Muitíssimo bem dito. Sempre tive para mim que os blockbusters são cruciais para a existência do resto do cinema, mas expuseste tudo muito bem.
«Vem esta reflexão a propósito de uma acalorada e fracturante discussão, num grupo de bloggers cinéfilos de uma popular rede social, em reacção ao texto do crítico João Lopes, intitulado «Transformers 3: para matar o cinema» e publicado no blog sound + vision.
Se uma "parangona" destas, por si só, é suficiente para fazer qualquer cinéfilo estremecer na cadeira, revela-se mais preocupante a forma redutora como o tema é abordado e fundamentado(?) — que mais parece ter sido dactilografado num autêntico acesso de "raiva" —, generalizando a "formação" cinematográfica do espectador que, supostamente, assiste regularmente a um determinado género de longas-metragens.
De entre os vários pontos de vista a favor e contra (desde já, todos legítimos) que um texto destes pode suscitar — e são muitos, tendo em conta que a referida discussão no grupo de cinéfilos conta, e à hora da publicação deste post, 196 comentários —, pode-se ler a crítica à posição de que um filme só é "filme" quando apresenta vertente intelectual em detrimento de uma das primeiras funções do Cinema (leia-se entretenimento ou evasão do quotidiano), salienta-se a diferença entre as audiências de hoje e as de há 30 ou 40 anos, argumenta-se sobre as actuais políticas de distribuição cinematográfica e culmina na total aprovação do que é dito pelo crítico no blog sound + vision.»
Creio que estamos perante um grave problema de interpretação. Como pude ler, muito surpreendido, no Facebook, insulto puxa insulto (e isso sim, é uma falta de respeito tremenda), e a raiva reside em que se sente incomodado com uma publicação que tem tudo de correcto. Então vejamos:
1) "generalizando a "formação" cinematográfica do espectador que, supostamente, assiste regularmente a um determinado género de longas-metragens" - errado. João Lopes nunca fez isso. Ele escreveu: "Como é que um espectador formado (?) apenas a ver filmes como este [leia-se: filmes com "uma avalanche de ruído (visual e propriamente sonoro) que menospreza qualquer gosto narrativo e que, ao longo de 150 minutos, mais não faz do que repetir a lógica pueril de gratificação instantânea do seu próprio trailer"]"
2) "um filme só é "filme" quando apresenta vertente intelectual em detrimento de uma das primeiras funções do Cinema (leia-se entretenimento ou evasão do quotidiano)" - Nunca, em momento algum, João Lopes se opôs aos blockbusters e à sua existência. Basta seguir com atenção os restantes posts que ele escreve ou críticas a alguns dos mais célebres blockbusters dos anos passados (5 estrelas para SHUTTER ISLAND, por exemplo). Aqui comete-se um erro de falsa dedução, que assisti no Facebook vezes sem conta. E creio que o João tem noção suficiente para saber a importância crucial que o blocbuster tem no mercado. Ou seja, o post em sua defesa em detrimento do que é dito pelo crítico de cinema é altamente inconsequente e só fomenta juízos precipitados - e, esses sim, sem fundamentação.
Apesar da importância dos blockbusters, convêm diferenciá-los. Transformers 3 é um conjunto de efeitos especiais martelados para caber em 150 minutos sem uma ordem premeditada aparente. "The Dark Knight" também é um blockbuster.
Achar tolerável a existência de filmes apenas como bónus de um Menu Xtra-Large de Pipocas e Coca-Cola é estar a dizer que os meios justificam os fins, em vez de procurar outras soluções para salvar as obras do passado. Será que o saldo entre filmes sofríveis que se fazem para salvar bons filmes do passado é positivo?
Noutro dos pontos que foi tocado, o visionamento de filmes como os de Bergman exigem educação. Isso é óbvio! É ridículo afirmar o contrário. Ninguém começa a ler Saramago ou Eça antes de ler "Os Cinco" ou o "Harry Potter". A transição é difícil e alguém que esteja habituado a Transformers e outros que tais provavelmente não a conseguirá fazer. Não por não ser capaz, mas porque se aborrece no caminho.
Cumps Cinéfilos do Baú-dos Livros e
Ósum Pósume
ArmPaulo e O Projeccionista: obrigado pelas vossas palavras.
Acrescentando ao que dizem, e reforçando um ponto de vista anteriormente sublinhado por mim, eu adoro Cinema, adoro as variadas experiências que me proporciona e nunca é de ânimo leve que "deito abaixo" um filme ou os espectadores que o vêem.
Cumps cinéfilos.
Diogo: obrigado pelo teu comentário; perante a conjuntura actual, olho para os blockbusters como um importante contributo para a preservação da memória cinéfila.
Cumps cinéfilos.
Flávio: obrigado pelo teu comentário.
Tal como os insultos, também os problemas de interpretação puxam problemas de interpretação, e digo isto com o máximo de respeito pela tua óptica acerca deste assunto.
Eu li várias vezes o que João Lopes escreveu e, ao lê-lo novamente, não vejo outra interpretação que não seja a generalização — sem olhar a faixas etárias, backgrounds sócio-económicos e hábitos de consumo. Porque, acredites ou não, eu formei-me cinematograficamente com muito filme que, na sua essência, era avalanche de ruído sem qualquer "sumo".
Quanto à "vertente intelectual" de um filme e uma vez mais, parece-me que dás razão ao que digo quando suscitas como exemplo SHUTTER ISLAND, filme que não lhe chamaria de blockbuster mas sim um produto dito mainstream. E já que se invocaram outros títulos avaliados por João Lopes, convém relembrar o que foi escrito acerca de blockbusters recentes, como THOR (http://www.cinema2000.pt/ficha.php3?id=16957&area=criticas), SCOTT PILGRIM CONTRA O MUNDO (http://www.cinema2000.pt/ficha.php3?id=16632&area=criticas) ou THE EXPENDABLES (http://www.cinema2000.pt/ficha.php3?id=16310&area=criticas). Noto muitas semelhanças na sua forma de encarar títulos com evidente rótulo de blockbuster sem pretensões de outra coisa. Mas quando um filme de grande orçamento apresenta argumento mais elaborado, a "cantiga" já toca de outra forma (http://www.cinema2000.pt/ficha.php3?id=16297&area=criticas)...
Por fim, como curiosidade e visto não estar referido no teu comentário, qual a tua opinião sobre o principal ponto de vista explanado no meu post? :)
Cumps cinéfilos.
Luís: obrigado pelo teu comentário.
Concordo com o que dizes acerca da necessidade de se diferenciar os blockbusters, e considero a tua questão bastante pertinente para esta discussão.
Realmente, não vejo que o blockbuster deva ser a única solução para a sobrevivência do cinema do passado mas perante as evidências (isto é, a crescente falta de preocupação governamental por patrimónios culturais ou artísticos), e por este ser um tema que me é querido, acredito que este meio justifica o fim.
Também concordo com o que dizes quanto à educação (ou formação) cinematográfica, daí que tenha referido o conceito de "espectador informado". Não interfiro com as opções e sentimentos de cada um perante o que vê, apenas posso não concordar.
Cumps cinéfilos.
Bom, Sam, não me vou alongar quanto ao João Lopes. Para mim basta ler os posts com muito cuidado. E, para mim, Shutter Island é para o grande público, é entretenimento, é mainstream e um blockbuster.
Quanto ao que escreveste (e mais uma vez não devia estar enquadrado no post do João), sobre a necessidade do cinema comercial, concordo em absoluto. É mais uma constatação, ninguém poderá negá-lo. Não há só um, ou dois, tipos de cinema - mainstream ou independente. Há muitos tipos de cinema para vários tipos de público. Onde é que "A Origem" satisfez todo o grande público? Aliás: onde é que o maior blockbuster satisfez todo o grande público? Nunca. Mas é preciso que a indústria, sobretudo a norte-americana, continue a oferecer produtos para as massas, sobretudo que prezem boas histórias, porque é para isso que um espectador comum paga para ver. E até agora - pego no exemplo do Transformers como podia pegar noutro qualquer - tenha apenas visto sequelas atrás de remakes, que é a pior coisa que se pode querer. Para mim Hollywood encontra-se numa crise de criatividade que as pessoas já perceberam - mas salvam-se os filmes de baixo orçamento, sobretudo aqueles que ainda conseguem ser representados pela Academia, para que o grande público atente neles e veja as histórias que pretende sentir.
Não é o tipo de cinema que prefiro, mas é um ao qual estou bastante atento, ou não estaria ansioso pelo último Harry Potter.
Flávio:
"Há muitos tipos de cinema para vários tipos de público". Totalmente de acordo!
E, imagina só, não estou minimamente ansioso pelo Harry Potter! :)
Abraço!
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