Breve resumo dos principais filmes visualizados esta semana:
. A MORTE DE CARLOS GARDEL
. UIVO
. UM MÉTODO PERIGOSO
. MARTHA MARCY MAY MARLENE
. LE GAMIN AU VÉLO
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. A MORTE DE CARLOS GARDEL (2011), de Solveig Nordlund
Nuno (Carlos Malvarez), um jovem toxicodependente em coma, está a morrer num hospital. Durante os dois dias em que se encontra entre a vida e a morte, cada um dos familiares evoca junto a ele uma teia de recordações do passado. O pai, Álvaro (Rui Morrison), apaixonado por tango, recusa-se a aceitar a morte de Nuno, deixando-se levar numa espiral de delírio e confundindo um imitador com o seu cantor de tango argentino favorito, já desaparecido: Carlos Gardel.
Se fosse necessária uma prova flagrante de que pedigree literário conceituado não resulta automaticamente em bom cinema, Solveig Nordlund acaba de a providenciar. Facilmente elegível ao estatuto de pior filme português do presente ano, não há "tango" que resista à inépcia aqui reunida, facto ainda mais surpreendente tendo em conta os talentos representativos e artísticos envolvidos. O drama central, exposto em três linhas narrativas temporalmente distintas, tolhido por personagens secundárias que nunca deveriam ter sobrevivido ao processo de adaptação do romance de Lobo Antunes e com o "fantasma" do cantor franco-argentino insondavelmente a assombrar os preceitos, esgota cedo as suas potencialidades — e o habitual registo deadpan de Rui Morrison, paradoxalmente, contribui para esse estado de coisas.
O espectador alcança todas estas confrangedoras conclusões quando se apercebe que um actor como Ruy de Carvalho foi escolhido apenas para dar vida ao "Carlos Gardel português", um conjunto de maneirismos simplistas que se expressa, maioritariamente, através de repetitivos playbacks de «Por una cabeza». Por outras palavras, esta é uma farsa encenada de modo impudente que nem busca desafiar-nos no seu artificialismo.
. UIVO (2010), de Jeffrey Friedman e Rob Epstein
São Francisco, 1957. Uma obra-prima é julgada e esse é um momento decisivo para a contra-cultura americana. O filme recria a vida de Allen Ginsberg (James Franco) e do poema Howl, explorando géneros e temas que ainda hoje são actuais: a definição de obscenidade, os limites da liberdade de expressão, a natureza da arte.
Rigoroso e criativo exemplo de crítica literária em cinema, contextualiza com imenso detalhe o polémico e revolucionário poema de Allen Ginsberg sem o "secar" por inteiro, dando, assim, azo à sua descoberta na íntegra. O mesmo acontece na recriação dos primeiros anos do movimento beatnik e, sobretudo, no protagonismo de James Franco, um irrepreensível trabalho de transformação psicológica que explica as razões da personalidade responsável pela concepção de um texto tão "inflamado".
A nível formal, a dupla de realizadores cria algo próximo de outros títulos irreverentes dedicados a fenómenos artísticos, como as visões musicais de Todd Haynes em VELVET GOLDMINE (1998) e I'M NOT THERE — NÃO ESTOU AÍ (2007) ou o biopic de Julian Schnabel sobre BASQUIAT (1996): as sequências animadas ilustrativas do poema são, a par do já referido Franco, momentos altos de um filme que no entanto arrasta-se, desnecessariamente e durante as sequências de tribunal, num manifesto em prol da genuína definição de liberdade de expressão. Fora isso, UIVO é merecedor de atenta visualização.
. UM MÉTODO PERIGOSO (2011), de David Cronenberg
Em vésperas da Primeira Guerra Mundial, Carl Jung (Michael Fassbender) decide concentrar-se nas peculiares enfermidades da bela mas extremamente reprimida Sabina Spielrein (Keira Knightley), acabando por se envolver romanticamente com ela. Entretanto, a sua visão da psicanálise entra em rota de colisão com a do próprio Sigmund Freud (Viggo Mortensen)...
Após décadas dedicadas à transformação, deformação e destruição do corpo, é quase lógico que David Cronenberg se dedique agora ao sítio onde toda aquela imagética de body horror sempre causou maior impressão: a mente humana. Analisando o triângulo amoroso-profissional entre Freud, Jung e Spielrein, o realizador canadiano proporciona-nos o filme mais atípico da sua carreira, um primoroso exercício de contenção a todos os níveis e capaz de reacender o debate sobre a validade do cinema arquitectado mais em palavras do que em imagens e desenvolvimento de situações. Na verdade, UM MÉTODO PERIGOSO é uma obra que, tal como a psique, não é imediatamente legível à superfície.
Num ritmo que emula a sociedade aristocrata reprimida de Viena e Zurique nos inícios do Século XX, o filme revela contemporaneidade na exploração de temas permanentes (estabilidade social, sucesso profissional, traumas pessoais) e vive do seu trio de protagonistas. Mortensen é impecável na composição de um Freud conservador e reticente em ceder a autoridade da ciência que fundou, Knightley equilibra cabalmente um retrato de profunda neurose e poderoso intelecto, mas é o Carl Jung de Fassbender que realmente se destaca, figura ansiosa em libertar-se dos "paternalismos" da psiquiatria mas dividido entre a razão científica e a paixão inconsciente. De visualização obrigatória, mesmo não existindo conhecimento de causa acerca dos factos explanados.
. MARTHA MARCY MAY MARLENE (2011), de Sean Durkin
Assombrada por dolorosas memórias e sofrendo de ansiedade crescente, Martha (Elizabeth Olsen) escapa ao controlo de uma seita abusiva e regressa a casa para viver com a irmã Lucy (Sarah Paulson). Contudo, os constantes pesadelos causados pela coerção psicológica daquele culto impedem uma vida normal e Martha acaba por cair num irremediável estado de pânico permanente.
Vencedor do prémio de Realização Dramática no último Festival de Sundance, é uma reflexão inteligente, ameaçadora e extremamente pungente sobre as formas como certos cultos — os contornos do representado em MARTHA MARCY MAY MARLENE nunca são devidamente esclarecidos, tornando a sua existência ainda mais inquietante — alimentam-se de vulnerabilidades psicológicas para inculcar convicções que tanto podem apelar ao nirvana budista como, logo de seguida, degradam a mente e o corpo dos seus seguidores.
Obra de terror minimalista, assinala a chegada de dois grandes talentos no panorama actual do cinema independente norte-americano: Durkin, no seu primeiro trabalho, demonstra um controlo incrível de mise-en-scène e a habilidade de perturbar o espectador através do que não se vê nem ouve; e Elizabeth Olsen (a irmã mais nova das erráticas gémeas Mary-Kate e Ashley) entrega-se a uma destemida performance, variando entre uma gama de emoções (ingénua, distante, traumatizada, inocente, perversa, feroz, etc.) sem aparente esforço, naquela que já é uma das maiores interpretações femininas do ano. Mesmo que o seu formalismo não encontre consenso alargado, MARTHA MARCY MAY MARLENE encontrará o culto que merece.
. LE GAMIN AU VÉLO (2011), de Jean-Pierre Dardenne e Luc Dardenne
Cyril (Thomas Doret), prestes a completar doze anos, tem apenas um plano: encontrar o pai que o abandonou num infantário. Conhece, por acaso, Samantha (Cécile de France), a gerente de um salão de cabeleireiros que o deixa ficar com ela nos fins-de-semana. Cyril é incapaz de reconhecer a empatia que Samantha sente por ele; contudo, só esse amor poderá acalmar a ira que cresce dentro do rapaz.
Devo confessar — para surpresa e subsequente revolta de alguns — que nunca morri de amores pelos filmes dos irmãos Dardenne. ROSETTA (1999) representou o auge do duo de cineastas que, desde então, foi explanando a mesma fórmula narrativa numa série de contos humanistas que, neste LE GAMIN AU VÉLO, revela-se rebuscada, demasiado esforçada e deliberada na perseguição do simples objectivo de nos querer fazer sentir algo.
Embora possua os seus momentos, e pontuado pela sólida interpretação do seu jovem protagonista — uma autêntica "concha" emocional na forma de um adolescente de onze anos —, o filme exibe o seu naturalismo em constante oposição à lógica mundana de acontecimentos e motivações (as razões porque Samantha decide adoptar Cyril não encontram justificação) e em direcção a uma série de desenlaces totalmente previsíveis. LE GAMIN AU VÉLO está longe de ser um mau filme, mas afigura-se como prenúncio inquietante dos limites criativos de Jean-Pierre e Luc Dardenne...
domingo, novembro 27, 2011
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2 comentários:
Não gostaste mesmo da Morte do Carlos Gardel. Não dou muito pelo filme mas estou bastante curiosa para o ver, assim como ao Uivo.
Do Dangerous Method, como acho que já te disse, gostei mas estava à espera de um filme um pouco mais profundo e violento.
Sobre os restantes não os vi, mas ficou a recomendação. :)
Inês,
o A Morte de Carlos Gardel é um daqueles filmes que dão maior ênfase negativo à expressão "quero o meu tempo de volta!" :)
Quanto ao filme do Cronenberg, adorei as subtilezas do seu argumento e respectiva transposição visual; e quero revê-lo muito em breve!
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