terça-feira, outubro 02, 2012

Dias de Festival de Veneza

O testemunho, único e pessoal, do Diogo Lima em Veneza.

Estudante de cinema, mas já duplamente premiado no Panazorean Film Festival com PDL-LIS, e o melómano autor do blog Edição Limitada, fruiu, recentemente, da invejável oportunidade de acompanhar o Festival de Veneza em primeira mão. Em discurso directo, eis o seu relato de dez dias em Veneza.




Há coisa de três semanas um grupo de 27 jovens (um por cada nacionalidade da UE) teve a oportunidade de visitar o Festival Internacional de Cinema de Veneza e de integrar uma série de conferências e workshops promovidos pela secção independente Venice Days, a casa-mãe da iniciativa promovida pelo Parlamento Europeu, Europa Cinemas com colaboração do site Cineuropa.org. Eu fui o português seleccionado em representação do Cinema City Classic Alvalade (ao qual aproveito para deixar, mais uma vez, um enorme obrigado!) e este é um relato muito compacto da minha experiência.

Não te apercebes que vais viver um dos melhores momentos da tua vida quando recebes um e-mail a dizer que foste seleccionado para ir a um dos maiores festivais do mundo. Não te apercebes disso quando recebes as passagens de avião ou quando, a 20 minutos da viagem para o aeroporto, perdes as chaves do cadeado que — maravilha das maravilhas — já está posto na mala.

Não te apercebes disso quando chegas ao Marco Polo e encontras o gajo de Malta com quem vais apanhar o barco para o Lido nem quando te dão as chaves para ficares num apartamento com uma holandesa, uma lituana e um dinamarquês.

Os primeiros momentos de conversa que tens com o resto do pessoal dão-te logo a entender que há ali uma "conexão latina" — Portugal, França, Itália e Espanha dão-se sempre às mil maravilhas. Independentemente de nacionalidades, o gelo quebra-se com todos à medida que a vergonha se perde.

A rotina constrói-se e entranha-se involuntariamente em cada um. Depois de acordar às 7, grunhem-se dois dedos de conversa entre um espresso e um croissant no Caffè Bahiano (com um daqueles muy tugas azulejos a dizer "evite ressacas, mantenha-se bêbado"). Seguem-se as conferências matinais, o almoço numa das piores "cantinas" que este mundo já viu dar à luz e uma tarde entre passeatas e doses cavalares de longas-metragens que se estendem até à meia-noite, hora em que num inglês mais ou menos abrutalhado se trocam opiniões e se criam laços fortalecidos por uma Nastro Azzurro ou por uma Spritz numa esplanada qualquer.

A correria para as filas pré-filme (condição à qual até o detentor de uma mera credencial da Giornate Degli Autori está sujeito) faz parte da rotina e é como uma imperial: quando se está acompanhado sabe melhor. Rapidamente se dá com o jeito ao recinto quando tanta vez se procura pelas Sala Darsena, Volpi, Pasinetti, PalaBienale...

"Signore e signori, vi preghiamo di prendere posto, la proiezione sta per iniziare."

Poucas vezes senti um arrepio tão forte quando vi pela primeira vez a animação introdutória do festival, obra do italiano Simone Massi (http://www.youtube.com/watch?v=oYdnOUAWKu0). Infelizmente a primeira sessão acaba por ser um prenuncio da mediania a que os meus olhos foram sujeitos nos dias que se sucederiam.

As expectativas depressa foram abaixo: WOMAN’S TALES — uma série de curtas realizadas por mulheres financiada pela MIU MIU — e PINOCCHIO — uma animação de Enzo D’Alò capaz de dar ataques epilépticos até ao homem mais são numa narrativa demasiado curta e compactada para uma história tão grande — revelaram-se desilusões para quem estava à espera de algo mais.

Apesar do vasto leque de narrativas desastrosas e personagens inconstantes/inconsistentes, Veneza não tem o nome que tem por magia; houve tempo para revelações como QUEEN OF MONTREUIL, de Solveig Anspach, a afirmação de Jesper Ganslandt (BLONDIE) como um realizador muito a ter em conta ou a mesmerizante aventura de Harmony Korine pelos meandros da degradante cultura pop actual em SPRING BREAKERS. TABU, de Miguel Gomes (nomeado para o LUX PRIZE da UE), é definitivamente um arthouse crowd pleaser. IO SONO LI, de Andrea Segre, uma calma e melancólica abordagem à história de uma chinesa no meio de pescadores italianos. THE MASTER, de Paul Thomas Anderson, deixou-me com as voltas trocadas (tanto no bom como no mau sentido). TAI CHI ZERO, um Scott Pilgrim chinês com cheiros de Spielberg.

As manhãs eram preenchidas com panel sessions com gente do mundo do cinema como Giorgio Gosetti, director do Venice Days; Derek Malcolm, crítico internacional; Solveig Anspach, realizadora islandesa; Frédéric Boyer, o director artístico do Tribeca Film Festival; Domenico LaPorta, editor do Cineuropa.org.

Não te apercebes que estás a viver um dos melhores momentos da tua vida a meio da experiência. Discutes isso com quem te acompanha diariamente, mas estás demasiado ocupado a absorver tudo à tua volta. Os workshops e panel sessions, as noites passadas entre discussões infrutíferas sobre a qualidade do trabalho de Terrence Malick e danças ao som dos hits que só os italianos sabem condicionar numa playlist.

A quilometragem vai pesando nas pernas à medida que o Lido se vai tornando habitat natural e até o Hotel Des Bains de MORTE EM VENEZA, pelo qual passamos diariamente, se torna quase invisível. Há tempo para uns desvios em S. Maria Elizampetta ou até mesmo a Veneza que todo o mundo conhece, mas o percurso de 20 minutos a pé entre apartamento e casino vai parecendo cada vez mais e mais longo. Até a Spritz já começa a saber bem.

E chegamos ao último dia de festival: na cerimónia de encerramento concentram-se centenas de jornalistas e jovens com acreditações em frente a um LCD pequeníssimo para tanta gente. Sabem-se os vencedores dos cobiçados leões e batem-se palmas aos vencedores. A tensão é maior que numa final de campeonato europeu. O Leão de Prata vai para THE MASTER, palmas. Tudo em aberto para o Leão de Ouro. É PIETÀ, de Kim-Ki Duk. Um favorito do juri, crítica e público com um realizador estranhamente carismático que faz até os jornalistas berrarem um "Yes!".

Começas a aperceber-te à séria que viveste uma das melhores experiências da tua vida quando te começas a despedir a pouco e pouco das outras 20 e quantas pessoas que fizeram parte dos últimos dez dias. Mais do que uma série de conferências, filmes e debates, o 27 Times Cinema foi uma oportunidade para discutir, conhecer e aprofundar sabedoria com outros europeus com a mesma sede, alargar horizontes (e até arranjar oportunidades de emprego!) e afins.

Pouco me importa que Toronto esteja a ganhar relevância no panorama dos festivais; Veneza ficará para sempre no coração deste vosso companheiro que vos escreve como o primeiro grande (e grandioso) festival de cinema. E só por aí já dá para perceber que a coisa foi MESMO boa.

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Obrigado, Diogo, por teres aceite o convite em partilhar a tua experiência nos Venice Days!

1 comentário:

ArmPauloFerreira disse...

Impecável o testemunho, escrito vibrantemente e imparável. Muito bom!

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