sexta-feira, fevereiro 15, 2013
BESTAS DO SUL SELVAGEM (2012), de Benh Zeitlin
Hushpuppy, uma intrépida menina de seis anos, vive com o pai, Wink, numa comunidade isolada, a sul do delta do Mississipi, a que chamam "A Banheira". Quando Wink contrai uma doença misteriosa, a natureza fica fora de controlo — a temperatura sobe e as calotes polares derretem, libertando um exército de criaturas pré históricas chamadas "auroques". Com o nível das águas a subir, a aproximação dos auroques e a saúde de Wink a piorar, Hushpuppy decide partir em busca da mãe. — filmspot.pt
Num breve exercício de memória, constatamos que a esmagadora maioria da resposta, por parte da cinematografia norte-americana, às catástrofes e tragédias que assolaram a homeland sempre esteve impregnada de um tom dramaticamente realista, mundano e com todas as "peças" (personagens, argumento, valores de produção, etc.) devidamente alinhadas.
Nesse sentido, BESTAS DO SUL SELVAGEM posiciona-se no lado oposto deste panorama e infunde-se de um extraordinário realismo mágico para — e isto é pura opinião pessoal — reagir terna e simbolicamente às feridas infligidas, em 2005, pelo Furacão Katrina: um evento fracturante para a plena observação da divisão social dos Estados Unidos da América (literalmente assinalada, no filme, pela presença do dique que separa o urbanismo da "Banheira") e que obrigou milhares a reverterem para um estado comportamental de sobrevivência básico, hostil e, em suma, "selvagem".
É nesta condição primordial que BESTAS DO SUL SELVAGEM nos situa, centrando a história na pequena Hushpuppy (Quvenzhané Wallis, jovem intérprete possuidora de intensa mediação emocional e justamente nomeada para um Oscar), frágil de compleição, com personalidade volátil a caminhar para o indomável e uma imaginação fugitiva da miséria quotidiana, capaz de invocar criaturas míticas e de reconhecer poderes mágicos na figura da sua mãe desaparecida/ausente.
Hushpuppy é, portanto, a força motriz do realismo mágico de BESTAS DO SUL SELVAGEM, não só enquanto protagonista, mas também na personificação do conjunto de características que animam, esteticamente, o filme: uma fotografia crua, de focagem "indecisa", com o grão do 16mm (formato em que foi rodado) a enunciar uma realidade suja e imperfeita mas suscitadora do fascinante sentimento de descoberta.
Pela sua abordagem formal, não custará sugerir a determinante influência, a longo prazo, que BESTAS DO SUL SELVAGEM poderá exercer no seio da indústria norte-americana. Aliás, a reflexão desencantada da América, observada a partir da geografia interior do país e "interpretada" pelos sócio-economicamente desfavorecidos — nesse âmbito, basta recordar os recentes DESPOJOS DE INVERNO (2010, Debra Granik) ou KILLER JOE (2011, William Friedkin) — já se afigurava como tendência; contudo, Zeitlin inova com o referido realismo mágico digno da literatura de Borges ou Saramago, cujos traços não atenuam o sofrimento de resignação ("sou uma peça pequena de um grande universo, e é assim que deve ser", tal como refere, a certa altura, Hushpuppy) nem do estoicismo (embutido em Dwight Henry, noutra performance digna de registo, enquanto pai da protagonista) das personagens.
Entre o registo dominado pela modéstia financeira da produção, a apaixonada recriação do folclore norte-americano, o frenesim criativo de Terrence Malick (sim, a comparação não é descabida) e a crítica social, BESTAS DO SUL SELVAGEM triunfa como algo de inteiramente novo. Permissivo a múltiplas leituras e com o provável "selo" de filme influente, é de visualização muito recomendada.
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2 comentários:
Partilho plenamente da tua opinião, incluindo a classificação. Uma óptima interpretação por parte da Wallis. Uma boa direcção de fotografia. Uma boa surpresa do ano transacto.galothe 2653
Cumprimentos,
Rafael Santos
Memento mori
Concordo, basicamente, com o que escreveste, Sam. Curiosamente, também associei a câmara do Zeitlin à do Malick nalguns momentos do filme. E achei o prólogo absolutamente delicioso, a conjugação (quase) perfeita entre som e imagem :)
Cumprimentos cinéfilos,
António Tavares de Figueiredo
(Matinée Portuense)
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