sexta-feira, maio 11, 2012

Dia Internacional do Público e do Cineclubismo



[Texto da intervenção proferida ontem à noite, no 9500 Cineclube de Ponta Delgada, a propósito da homenagem (com exibição de EM CÂMARA LENTA, o seu último filme) prestada ao cineasta Fernando Lopes no Dia Internacional do Público e do Cineclubismo.]

O 9500 Cineclube assinala o Dia Internacional do Público e do Cineclubismo com a exibição do filme EM CÂMARA LENTA, a última obra do cineasta Fernando Lopes, recentemente falecido, e cuja marca permanente na História moderna do cinema português é assim homenageada.

O percurso e o nome de Fernando Lopes estão indelevelmente ligados ao movimento que ficou conhecido como Novo Cinema Português. Todavia, e se me é permitida a ousadia histórica, diria mesmo que Lopes foi o seu principal e mais influente representante. Passo a explicar.

As suas obras anteriores ao 25 de Abril de 1974 demonstram uma absoluta e radical rejeição formal e temática ao cinema patrocinado pelo Estado Novo como nenhum filme havia feito até àquela altura.

DOM ROBERTO (1962, Ernesto de Sousa) ou OS VERDES ANOS (1963, Paulo Rocha) são comummente considerados os percursores do Novo Cinema. No entanto, sou tentado a apontar BELARMINO (1964) como o filme que realmente alterou o paradigma — nos seus propósitos estéticos, nas suas motivações morais, na experiência total que conjuga, assistiu-se a uma reinvenção e desconstrução cinematográficas sem paralelo na história da cinematografia portuguesa.

Desconstrução... Eis uma palavra que resumiria, quase na perfeição, o trabalho de Fernando Lopes. Mas a súmula dos assuntos abordados pelo cineasta são tão ou mais interessantes quanto a análise formal da sua carreira.

Atentando aos três filmes que, de forma mais cativante, reuniram essas duas perspectivas — BELARMINO, UMA ABELHA NA CHUVA (1971) e MATAR SAUDADES (1988) — é possível deferir que Fernando Lopes foi um "cineasta de memórias".

BELARMINO alia o olhar documental a uma estética de cinema directo para salientar episódios de vida de um boxeur e engraxador de sapatos lisboeta. A glória passada de Belarmino Fragoso é constantemente invocada — memórias estilhaçadas e exploradas pelo vil dinheiro — e o protagonista deste documentário (é preciso não esquecer que o filme é uma exposição de realidade) apresenta-se aos nossos olhos quase como o anti-herói de uma ficção trágica.

A exploração da memória humana converte-se em experiência sensorial para o espectador em UMA ABELHA NA CHUVA, certamente um dos grandes filmes produzidos no nosso país.

A temporalidade de UMA ABELHA NA CHUVA é definida pela ausência de linearidade narrativa, por assincronias, nas sobreposições paralelas de imagens, sons e acções. E o tempo indefinido em que se situa o filme é quase análogo ao nosso próprio processo de memorização — aqui, torna-se significativa a relação entre momentos, imagens, sinais, visões, locais, sons, palavras, consequências. Ou, como escreveu Leonor Areal, «tudo aquilo que é a matéria do cinema e que a memória trabalha livremente»1.

O confronto entre traumas de um passado colonial bélico e a mudança de valores de um país em construção democrática dominam o argumento de MATAR SAUDADES. Por outras palavras, estamos novamente perante a contenda entre a opaca substância da memória e a áspera feição da realidade.

Não será por acaso que a sequência-chave de MATAR SAUDADES é aquela em que o protagonista, intepretado por Rogério Samora, invoca junto do irmão mais novo os acontecimentos em torno da morte trágica do pai de ambos. Nenhum espectador conseguirá fugir ao seu rigor formal, às palavras debitadas com amargura, a todas as emoções ali reunidas...

Do filme que vamos ver esta noite, apenas conheço o trailer. Mas nos seus singelos dois minutos de duração, é possível entender que Fernando Lopes assumiu o estatuto de "cineasta de memórias" bem até ao fim. Naquela peça promocional, a personagem de João Reis traceja de memória, e num bloco de notas, uma série de relações interpessoais.

É o tal exercício de invocação do passado, sempre presente...

O cinema de Fernando Lopes não era alegre. Os "fracassos" estéticos de NÓS POR CÁ TODOS BEM (1978) e CRÓNICA DOS BONS MALANDROS (1984), provam-no de certo modo2. Contudo, todos os que, a propósito do seu falecimento, recordaram o cineasta, falam de um indivíduo sincero, emocional, de charme contagioso.

Tanto por isso, e pelo conjunto da sua obra, não existe cineasta mais influente para o cinema português contemporâneo como Fernando Lopes. Se, agora, se premeiam abundantemente "sangues do nosso sangue", "tabus" e "rafas", tal deve-se em grande medida ao legado de Fernando Lopes.

Termino esta intervenção com as palavras do realizador Fernando Matos Silva: «Aquilo que um espectador espera dos nossos filmes é que aconteça uma verdade contagiante que os leve a pensar e a viver. E isso acontece no cinema de Fernando Lopes. Podemos jogar na vida como no cinema, com a condição de sermos sinceros. Sem ideias, o cinema não existe. É essa a mensagem de Fernando Lopes, para todos nós. Compreendermos que o cinema existe por todo o lado, à nossa volta, e que fazer filmes é também vivê-los. E a vida continua, e os filmes também.»3

Samuel Andrade.

Notas:
. 1 in CINEMA PORTUGUÊS: UM PAÍS IMAGINADO VOL. 1 — ANTES DE 1974, 2011, Edições 70.
. 2 in FERNANDO LOPES POR CÁ, capítulo FERDINAND por Seixas Santos, p. 16, 1996, Edição Cinemateca Portuguesa — Museu do Cinema.
. 3 in FERNANDO LOPES POR CÁ, capítulo A CIDADE-REFÚGIO por Fernando Matos Silva, p. 19, 1996, Edição Cinemateca Portuguesa — Museu do Cinema.

3 comentários:

Tiago Ramos disse...

*clap *clap*

Parabéns! Muito bom. Espero que tenha corrido bem.

Sam disse...

Obrigado, Tiago!

Sim, correu. Mas fica sempre aquela (minha) sensação de que um evento destes merece sempre mais público... :)

Abraço!

Inês Moreira Santos disse...

Como já tive oportunidade de to dizer, excelente texto.

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