sexta-feira, abril 26, 2013

O Cinema dos Anos 2000: Longe do Paraíso, de Todd Haynes




Outono de 1957 no Connecticut. Eisenhower governa os Estados Unidos e encontramo-nos na época do idílico "sonho à Americana", do qual Cathy Whitaker (Julianne Moore) e a sua família são um perfeito exemplar, de tão perfeita e glamorosa a sua vida aparenta ser. Cathy é a típica dona de casa da época, mãe dedicada, linda e amorosa e o seu marido Frank (Dennis Quaid) é o austero e trabalhador chefe de família, antigo combatente de guerra e respeitado pela vizinhança. A sua apresentação pinta-nos o retrato de uma família inocentemente feliz, inconsciente do drama, vergonha e humilhação que se virá a abater sobre a sua casa.

A história aborda o público como se de voyeurs se tratasse, mostrando-nos mais sobre esta família do que as impressionantes festas e soirées e a rotineira vida do dia-a-dia deixam antever. É-nos revelado que Frank é homossexual em segredo, encontrando-se frequentemente com outros homens. A cena em que Cathy o descobre é devastadoramente triste — e a sua solução para o problema, propondo a Frank que busque ajuda psiquiátrica para este problema, mais aflitiva e penosa ainda é. Com a relação a sofrer consideravelmente, Cathy encontra consolo junto do seu jardineiro de raça negra, Raymond (Dennis Haysbert), culto e educado, mas portador de uma raiva escondida que vem ao de cima em situações sociais desconfortáveis. O falatório que Cathy gera por ambas as situações começa a tornar-se impossível de superar e, em pouco tempo, vemos como a vida idílica desta pobre e doce dona de casa esvanece quanto mais a realidade a assoma e a vemos, ansiosa e desesperadamente, agarrar-se a um pequeno semblante dessa vida que agora mais lhe parece um sonho distante, um paraíso bem longe dali.

Através de uma magnífica atenção ao detalhe e à atmosfera desse período histórico, por todos desde a soberba produção artística, a rica e extravagante banda sonora, as luxuosas roupas fabricadas pela inigualável Sandy Powell, auxiliadas por um elenco forte e competente e um argumento imaculado, somos imersos a fundo na infeliz fábula dos Whitaker. Abordando de forma directa e honesta temas como o racismo e a homossexualidade, que nos últimos cinquenta anos progrediram consideravelmente desde a visão cor de rosa e superficial que se tentava passar enquanto a descriminação, o preconceito e a violência ocorriam debaixo dos narizes de toda a gente, Haynes mescla a ironia do presente com a inocência e ignorância de tempos idos e com isso fabrica um melodrama potentíssimo, uma obra-prima num género gasto, no qual poucos ousariam tentar algo novo. Depois do afirmativo SAFE — SEGURO (1995) e do revolucionário VELVET GOLDMINE (1998), o iconoclasta e autor de excelência Todd Haynes dedica-se a um reinventar o melodrama dos anos 50 com nova aventura junto da sua musa, Julianne Moore.

E não conseguiria arranjar melhor parceira que esta. Moore mostra-se invulgarmente à vontade com as palavras de Haynes e a sua habilidade especial de transformar um acto rotineiro numa peça de teatro, tal a multiplicidade de emoções que consegue transmitir com um simples olhar, fala ou movimento corporal, favorece as construções femininas do autor, normalmente pacatas e apagadas mulheres de família, habituadas a sofrer, com muito por dizer por entre os seus silêncios. O brilho particular desta personagem de Moore e Haynes está na forma reactiva e astuta como vai aprendendo com o decorrer da narrativa. Ela surge-nos como (mais) uma dona de casa ignorante e encantadoramente desfasada da realidade, mas a exposição a que é submetida leva a frágil Cathy a abandonar a natural passividade da mulher dos anos 50 e a começar a consciencializar-se de como é na realidade o mundo que a rodeia.

Ainda me surpreende como Julianne Moore é habitualmente esquecida quando nos referimos aos "melhores", sobretudo se comparada outros seus pares de igual importância (Winslet, Bening, Streep, Kidman, Foster, Blanchett). Uma explicação simples para tal é o quão simples a actriz o faz parecer. "Basta" pegar nas suas duas interpretações premiadas deste ano de 2002, aqui e em AS HORAS, duas donas de casa ideais aprisionadas num pesadelo de subúrbia do qual urgem escapar. Tão diferentes as suas personalidades, motivações, ambições e destinos. Que enorme intérprete. Pena que o Óscar, para uma das maiores de sempre, talvez já nunca virá.

por Jorge Rodrigues (Dial P For Popcorn).

Elenco
. Julianne Moore (Cathy Whitaker), Dennis Quaid (Frank Whitaker), Dennis Haysbert (Raymond Deagan), Patricia Clarkson (Eleanor Fine), Viola Davis (Sybil), James Rebhorn (Dr. Bowman), Michael Gaston (Stan Fine)


Palmarés
. Festival de Veneza: Taça Volpi — Melhor Actriz (Julianne Moore), Prémio SIGNIS — Menção Honrosa (Todd Haynes), Prémio Golden Osella — Contribuição Artística (Edward Lachman)
. Prémios Satellite: Melhor Filme — Drama, Melhor Realizador (Todd Haynes), Melhor Actor Secundário — Drama (Dennis Haysbert)
. Independent Spirit Awards: Melhor Filme, Melhor Realizador (Todd Haynes), Melhor Actriz (Julianne Moore), Melhor Actor Secundário (Dennis Quaid), Melhor Fotografia (Edward Lachman)
. Prémios Sant Jordi: Melhor Actriz Estrangeira (Julianne Moore)
. National Board of Review: Melhor Actriz (Julianne Moore)
. Círculo de Críticos de Los Angeles: Melhor Actriz (Julianne Moore), Melhor Fotografia (Edward Lachman), Melhor Banda Sonora (Elmer Bernstein)
. Círculo de Críticos de Nova Iorque: Melhor Filme, Melhor Realizador (Todd Haynes), Melhor Actriz (Julianne Moore), Melhor Actor Secundário (Dennis Quaid), Melhor Fotografia (Edward Lachman)


Sobre Todd Haynes

Conhecido por assinar filmes provocadores, que subvertem estruturas narrativas clássicas, denunciam hipocrisias modernas e centradas na ambiguidade sexual dos seus personagens, SUPERSTAR: THE KAREN CARPENTER STORY (1988), SAFE — SEGURO (1995), VELVET GOLDMINE (1998) e I'M NOT THERE — NÃO ESTOU AÍ (2007) são títulos fundamentais para a compreensão visual e temática da sua filmografia.



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